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O caso Joana: transporte e transformação do ator de f(r)icçãoLuciana Lyra

O caso Joana: transporte e transformação do ator de f(r)icção

"Por que então me agrada tanto a ideia de atores entrarem no palco sem rosto próprio? Quem sabe, eu acho que a máscara é um dar-se tão importante quanto o dar-se pela dor do rosto (LISPECTOR, 1999, p. 100)".


São Paulo, manhã do dia 13 de maio de 2013. Numa sala de ensaio, inicio o trabalho. Sento-me em frente ao espelho. Ouço vozes, que me questionam:
-O que faz quando sai de casa Joana? Aonde vai? Ouço histórias, Joana. Sobre a sua núpcia, sobre aquele rapaz. Tem alguma coisa que não está dizendo Joana? (INHAN, 2013, p. 1)
Respondo:
- Sou Luciana Lyra. E nada disso é real. E tudo isso é real. Em um minuto vou contar uma história para vocês. Eu vou falar algumas palavras e vocês vão ligar os pontos. E é só isso. (É preciso que vocês imaginem uma cidadezinha de interior. Preciso que vocês imaginem uma noiva. Uma noiva no dia de seu casamento. Horas antes e uma desistência. Preciso que vocês imaginem o caos na cabeça dessa mulher. As vozes que permeiam cada lado, o lóbulo frontal. É preciso que vocês imaginem uma estrada, mas isso é o meio do percurso). (INHAN, 2013, p. 1)
Em frente ao espelho, reconheço-me, mas não sou eu, nem sou outra, sou eu e sou Joana num só passo.
-De frente ao espelho ela/eu tapando o rosto com o véu, se despede da casa dos pais, se despede do quarto de menina, se despede do ladrilho do banheiro agora manchado com a porra dele. Sim, é preciso. Se despede da sacada, se despede da foto da mãe também noiva cravada na parede da sala, se despede do cachorro da vizinha, da cal borrada na parede, da telha furada obstruindo a proteção. Sim, é preciso. Por muitas em frente ao espelho, ela se espiava ainda menina, correndo pelos corredores da casa, levantando o vestido, sentindo o sol cortar os olhos, se balançando na rede e ouvindo sons. (INHAN, 2013, p. 1)
1 Luciana Lyra é atriz, performer, diretora e dramaturga. Professora de Artes Cênicas do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e mestre da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT), é pós-doutoranda em Antropologia pela FFLCH/USP (bolsista FAPESP), doutora e mestre em Artes Cênicas pelo IA/UNICAMP. É membro dos grupos de pesquisa NAPEDRA- Antropologia, performance e drama (USP/UNICAMP), Terreiro de Investigações Cênicas (UNESP) e ÍMAN – Imagem, mito e imaginário nas Artes Cênicas (UFG) . É integrante da companhia de teatro OS FOFOS ENCENAM-SP e fundadora de seu espaço de investigação, UNA(L)UNA – PESQUISA E CRIAÇÃO EM ARTE.

Joana, a máscara que porto ganha densidade, varia em matizes de cores, fragmenta-se num caleidoscópio que me transporta e se transforma em variadas combinações de formas. Ora sou eu, ora a outra, gerando imagens estilhaçadas. É um processo alquímico de variadas temporalidades e espacialidades, e, o que dizer desta mágica mutação? Busco interlocuções entre antropologia e teatro. Em meio a esta trama de campos de conhecimento, Richard Schechner (1985, p. 4) discute o modo como performers de diversas experiências rituais e tradições teatrais não procuram esconder o corpo por trás da máscara. A experiência de transformação vivida por performers e público tem muito a ver com uma relação entre máscaras e corpos capaz de produzir um estado liminar. Por intermédio da máscara Joana, poetizo minha própria história, ritualizo-me, e o que se descobre por trás, por baixo ou por cima da máscara pode ser da ordem do extraordinário. Numa espiral de tempos, pretendo evocar neste texto, como Joana manifestou-se e friccionou-se em mim. Ou até mesmo, como brinca o pesquisador John Dawsey, f(r)icionou-se em mim, fomentando: (...) um modo subjuntivo (“como se”) de situar-me em relação ao mundo, provocando fissuras, iluminando as dimensões de ficção do real e subvertendo os efeitos de realidade de um mundo visto no modo indicativo, não como paisagem movente, carregada de possibilidades, mas simplesmente como é. (2005, p. 170)
A fricção entre corpo e máscara aqui desvelada, sugere o que intitulo ator de f(r)icção (LYRA, 2011, p.44), uma espécie de cartógrafo que vai traçando paisagens na relação com o eu e a alteridade, podendo gerar momentos eletrizantes de uma cena em contínua transformação. Este texto trata de restaurar a gênese de uma performance, sua transformação e transportação, na tentativa de tecer uma colcha de retalhos de criação e desenredar um fio num labirinto cheio de elipses e de lacunas minhas. TEMPO
Recife, noites várias, ano de 2001. Um sonho recorrente: Uma mulher sobre um cavalo, seios nus e saia vermelha. Está trançada em correntes, tentando empunhar espada e estandarte... Num processo de maior elaboração imagética, conduzi a imagem

onírica e arquetípica da guerreira à energia específica da heroína Joana d’Arc2, que passou a servir de modelo de inspiração maior para a jornada que comecei a empreender performaticamente num curso de direção teatral, promovido pela Universidade Federal de Pernambuco, de então. Aquela Joana emergente, não era a Joana francesa da História, mas uma Joana minha, uma Joana pernambucana, brasileira, roubada à terra gloriosa de Olinda (BORBA FILHO, 1966, contracapa), carregando signos de minha cultura original, desvelados nos movimentos de trupés ou mesmo no discurso da cena, que mesclava falas em rima, correntes a sons de rabeca, numa mise em scène eminentemente intertextual. Foi sob a égide da máscara ritual de Joana, que desenvolvi a performance Joana In Cárcere, descortinando um trajeto pessoal, na restauração da minha própria história por meio do mito. A performance que depois passou a ser mote de meu Mestrado em Artes Cênicas (UNICAMP/2005) construiu-se por meio de imagens referenciais ativadas pelo campo da mitologia pessoal. Renato Cohen discorre que a imersão no campo mítico pessoal dá-se a partir do delineamento de personas autoreferentes (COHEN, 2007, p. 70). Na performance enquanto linguagem cênica, como ressalta Cohen (2007), o termo persona é amplo e toma o lugar da personagem do teatro convencional, designando uma galeria de personagens a partir de uma só figura-fundo, o performer em sua máscara ritual, advinda do campo da mitologia pessoal. Afirma ainda: A persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico. A personagem é mais referencial. (2007, p. 107) A persona também é a cristalização de alguma marca no plano representacional, de estados imaginários ou formalizados, carrega em relação ao conceito de personagem (referencial, textual), um maior grau de fugacidade, transitoriedade. A persona investe- se também como suporte de galeria de figuras, de composições não-miméticas, de estados cambiantes (conceito junguiano) (1998, p.84).
2 Santa guerreira do calendário cristão e a mais intrigante das estranhas personalidades da Idade Média. Nascida na França, lutou na Guerra dos cem anos, na qual franceses e ingleses disputavam territórios, num real conflito dinástico (LYRA, 2005, pp. 125-126).

Desta forma, Joana, enquanto persona, passou a ser leitmotiv da performance, que não se ateve a referenciais históricos ou construções psicológicas, mas a um prisma híbrido e abrangente, carregando em si estados de passagem e intertextualidade. Joana é a máscara ritual de mim mesma. Como presença corpórea, o performer, sob o amparo desta máscara ritual, é portal da experiência cênica e no comando da criação / atuação da cena, atualiza sua jornada pessoal e de seus antepassados, torna-se Um porta-voz do mundo oralizado e memorial, diz Cohen (2002, p. 25), ainda enfatizando que:
(...) quando um performer está em cena, ele está compondo algo, ele está trabalhando sobre sua “máscara ritual” que é diferente de sua pessoa do dia-a-dia. Nesse sentido, não é lícito falar que o performer é aquele que “faz a si mesmo” em detrimento do representar a personagem. De fato, existe uma ruptura com a representação, (...), mas este “fazer a si mesmo” poderia ser melhor conceituado por representar algo (a nível de simbolizar) em cima de si mesmo.(COHEN, 2007, p. 58)
Performance Joana In Cárcere (2005). De Luciana Lyra. (foto João Maria)
Tendo em vista este contexto de inter-relações, aquele portador da máscara ritual, não trabalha em prol da criação ficcional, mas agencia a si mesmo e suas conjunções simbólicas, memoriais, atritando realidade e ficção, e atuando na busca de uma arte de intervenção, modificadora, que almeja causar uma transformação nele mesmo e no receptor, no engendrar de uma arte cênica, que se sirva a um

metacomentário das dificuldades e conflitos da vida e da arte, e funcione como uma reordenação interpretativa da própria experiência social e artística. Em consonância com as ideias Victor Turner (2005), no âmbito da Antropologia da Experiência, o ator de f(r)icção, que atua sob a máscara ritual de si mesmo, é aquele que inventa uma realidade que, é, concomitantemente, espontânea e refletida, condensa o condicionamento sociocultural, fixado culturalmente e o eu, a ação sobre si mesmo, a autoconsciência. O ator de f(r)ição vivencia suas próprias imagens, seu trajeto antropológico, que estão inevitavelmente atreladas ao trajeto antropológico de sua cultura original. Desta perspectiva, o ator de f(r)icção inscreve-se na história como grande motor de criação no teatro. Sua voz, sua presença corpórea, suas pulsões individuais, suas identificações combinadas alquimicamente dão matéria às máscaras, que vem a manifestar o sentido das coletividades. Trata-se, assim, de fazer atuar a consciência sobre a inconsciente; de despertar a inconsciente natureza criadora de forma consciente, alcançando, dessa forma, uma criação superorgânica, superconsciente. Em cena, com Joana lutava com meus medos e oponentes.
TEMPO
São Paulo, dias vários, ano de 2006. Pesquiso. Sob às ideias de ator de f(r)icção e máscara ritual de si mesmo, senti ecoar um imaginário comum à Joana num distrito da zona da mata norte pernambucana: Tejucupapo. Lá, no período de ocupação de Pernambuco, pelos holandeses, entre 1630 e 1654, ocorreu pela primeira vez no Brasil, a participação de um coletivo de mulheres em um conflito armado, fato compreensivamente pouco conhecido na história de uma sociedade patriarcal e elitista como a nossa. Em 1993, lá, neste mesmo lugarejo marginal, Dona Luzia Maria da Silva, enfermeira do posto de saúde do lugar, fez estabelecer uma promessa a si mesma: a recuperação de um problema de saúde em troca da restauração da história de Tejucupapo, da sua história. O teatro foi a linguagem que Dona Luzia encontrara para transformar a peleja das mulheres numa realidade restaurada. Embora nunca tivesse assistido a um espetáculo cênico “oficial” em toda a sua vida, Dona Luzia arranjava tempo para escrever, dirigir e atuar, criando peças de teatro

para propagar os ensinamentos bíblicos. Sua formação artística abraçava as manifestações “oficiosas” do povo, como o Coco, o Pastoril e o Cavalo Marinho, tão presentes e basilares na constituição das sociedades da Mata Norte. Pelo teatro, Dona Luzia retomou a história ancestral de sua gente, escrevendo e dirigindo a peça de título A Batalha das Heroínas, que passou a acontecer no último domingo de abril, ano após ano, desde 1993 até os dias de hoje, ampliando-se, em 2002, para um evento intitulado A Festa das Heroínas, constituído de shows, feira típica, apresentações de grupos tradicionais e a culminância com o espetáculo teatral. A peça A Batalha das Heroínas tem como protagonistas as próprias mulheres do lugarejo, “atrizes” recrutadas entre donas-de-casa, servidoras públicas, agricultoras e pescadeiras – como são chamadas aquelas que vivem da maré, catando mariscos e ostras para a venda na sede do distrito. No teatro, as mulheres trazem à tona as suas próprias vidas (BEZERRA, 2004, p. 64). Durante a Festa/Peça, o que era rústico, pobre e rural, torna-se admirável, guerreiro, utópico, e irrompe em pleno Monte das Trincheiras, antigo lócus da batalha das heroínas de 1646, agora palco da encenação. Em ensaios e apresentação, no decorrer de todo mês de abril, as mulheres simples tomam à frente do combate das heroínas ancestrais, alimentando-se de suas máscaras, e oferecendo a estas mesmas máscaras, pelo caminho inverso, a possibilidade da restauração pela experiência performática. As máscaras das heroínas antepassadas pareciam abalar o eu das heroínas atuais, abriam- nas para o mundo e, no mundo, a abertura para o outro. Na leitura do livro Tejucupapo: história, teatro, cinema (BEZERRA, 2004), tomei contato com a existência das mulheres do distrito goianense, percebendo ressonâncias entre a cena de Joana e o espetáculo A Batalha das Heroínas. Esta aproximação constelar parecia acontecer por intermédio de três aspectos: um mesmo mito fundava ambas as encenações; as experiências performáticas articulavam passado e presente por meio de imagens; as máscaras das atuantes advinham de um campo eminentemente autoral, eram autoreferentes. Impulsionada pela percepção das estreitas relações entre minha poética e o imaginário tejucupapense, parti, no ano de 2007, para o aprofundamento da máscara ritual da guerreira Joana. Junto à comunidade, iniciei minha investigação de Doutorado em Artes (UNICAMP/2011), interessada em perseguir as possíveis interfaces entre o encaminhamento de meus trabalhos artísticos e a montagem teatral deste coletivo da

Mata Norte, convergindo, especificamente, para o modo como as mulheres atuam no espetáculo A Batalha das Heroínas, no que tange às máscaras e aos vetores simbólicos que as animam na expressão performática. Neste mesmo período, além de estabelecer contato inicial com bibliografia acerca de estudos sobre a Antropologia do Imaginário3 em disciplina do doutorado, integrei minha pesquisa ao projeto temático do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama - NAPEDRA4, intitulado “Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual”. Por estas experiências, a investigação afirmou-se como processo interseccional entre a Antropologia e as Artes Cênicas, fomentando uma trança, onde os fenômenos da performance e do imaginário desvelam-se como vértices do processo criativo em artes. Desenvolvida entre os anos de 2007 e 2010, a investigação passou a representar um processo de confluência de campos afins, que ampliou o foco em relação aos meus estudos de Especialização em Ensino da História das Artes e das Religiões (UFRPE/2002) e Mestrado em Artes, ambos orbitando em torno de procedimentos pedagógicos para criação de poéticas cênicas, com base em: memória, identidade, manifestações populares, performance e mito. Nos dois primeiros anos, a pesquisa realizou-se, fundamentalmente, por meio de minha atuação na comunidade, enquanto uma observadora, que aos poucos alçou o patamar de participante familiar nas ações coletivas, elaborando reflexões e construindo pontes entre a experiência em campo, as disciplinas acadêmicas e as leituras da bibliografia selecionada. Em fins do segundo ano, porém, principiou-se o processo de criação do espetáculo Guerreiras (2009)5, desenvolvido sob minha direção, com um grupo de artistas-pesquisadores, em São Paulo e no Recife, tendo por base principal o universo
3 O campo da Antropologia do Imaginário vem ganhando espaço na academia brasileira, principalmente pela atuação de pesquisadores do departamento de Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco e da Faculdade de Educação da USP, que realizam pesquisas acerca de configurações simbólicas expressas por práticas sociais diversas, imagens que integram um sistema antropológico a partir dos arquétipos coletivos. 4 O Napedra, formado por pesquisadores da PPGAS/USP e IA/UNICAMP, em ação desde 2001, vem desenvolvendo pesquisas de fronteira, entre Artes e Antropologia, especialmente acerca da Antropologia da Performance, da Antropologia da Experiência, campos que abordam os fenômenos rituais e estéticos. 5 A performance Guerreiras foi subsidiada pelo Funcultura-PE, em 2008 e apresentada, em abril de 2009 no Recife e em Tejucupapo. Em julho deste mesmo ano, foi novamente apresentada como parte da qualificação da pesquisa, na USP/SP, com o apoio do projeto temático do NAPEDRA. Em janeiro de 2010, cumpriu nova temporada em antigas fortificações do Recife, pelo projeto Guerreiras em Circuito de Guerra, também contemplado pelo Prêmio Funarte Myriam Muniz de Teatro e Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua-2009.

das mulheres tejucupapenses. Além da inspiração nas heroínas da Zona da Mata, deusas de todos os tempos fomentaram a montagem de Guerreiras, assim como uma camada predominantemente pessoal concluiu um tripé de estímulos à criação, que estreou em abril de 2009, sendo apresentada no Recife, em Tejucupapo e São Paulo. É Joana que abre a encenação e a dramaturgia de Guerreiras: Joana - Na aurora do mundo, Deus planejou o macho e a fêmea à sua semelhança. Criou o macho e a fêmea num só corpo, modelou com o pó do chão e soprou nas narinas um hálito de vida, assim foi gerado um ser vivente. Diz-se que na lua, deste corpo único migrou uma serpente, a mulher. Com ela vieram inumeráveis demônios, mas foi da cabeça de Deus que ela surgiu. Foi da cabeça de Deus que ela saiu. Foi da cabeça do pai. (LYRA, 2012, p.36)
Sobre esta dramaturgia, afirma Newton Moreno:
A questão mais premente para mim é justamente que o texto está armado em rede, tangenciando um campo mítico que o sustenta, ao depoimento das mulheres de Goiana e sua reverência às guerreiras de Tejucupapo, com a reverberação deste material no corpo-memória das atrizes. Um trabalho que constrói a ponte entre deusas ancestrais e mulheres de Tejucupapo, tendo como intermediárias, a vivência de cada uma das artistas mencionadas anteriormente. O aprendizado do humano na beira do mangue com respaldo das deusas. Um passeio muito interessante entre a fonte histórica (a resistência e luta das mulheres de Tejucupapo), a pesquisa de campo com as mulheres que habitam a região e o relato de suas lutas diárias, o campo de deusas e mitos que ampara milenarmente todas estas mulheres e o canto de guerra de cada atriz, sensivelmente inserido no Movimento da Guerra. Mesmo que se perca onde um começa e o outro termina, esta escrita multifocal nos permite uma viagem, um passeio, uma sugestão de guerras do feminino. (LYRA, 2010, p.9-10)
E completa:
Na investigação da pessoalidade de cada atriz reside grande mérito bélico, uma estratégia acertada neste campo minado do cruzamento entre depoimento-ficção tão caro a alguns procedimentos cênicos contemporâneos. Usufruímos assim de uma dramaturgia de trincheira que deve menos à linearidade de suas trajetórias e povoa nosso imaginário de todos estes mananciais. E quanto mais um destes campos invade o outro, mais o explica, redimensiona e nos situa quanto à abrangência desta obra. (LYRA, 2010, p.10)
Em Guerreiras estabeleci um diálogo permanente com o potencial metafórico do episódio das mulheres tejucupapenses. Joana se multifaceta nas máscaras de outras guerreiras/personas. Na dramaturgia/encenação, a imagem dos filhos se delineia no desabafo das mães, o contexto masculino é revisto na perspectiva do olhar das

mulheres, a ação dos “opressores” (e “opressoras”) se evidencia – e eventualmente se esclarece – no contraste com a ação das “oprimidas”. A partir da máscara multifacetada de Joana, entendo que guerrear é, ainda hoje, um símbolo apropriado ao esforço de qualquer um que busca fazer valer o direito de ser respeitado como membro da comunidade em que se vive. E existir como mulher, num mundo como o nosso, continua a ser desafiador e perigoso. Ainda ecoa nos cromossomos da humanidade o peso da submissão, opressão e auto-negação forçada que o feminino teve que assimilar através de milênios de história. Ainda sobre Guerreiras, diz Luiz Felipe Botelho:
Os clichês que rondam esse tema foram deixados de lado pela própria dinâmica do processo de criação desse projeto, no qual a autora, as atrizes-criadoras e demais criadores envolvidos, a partir das vivências na comunidade de Tejucupapo, estabeleceram um diálogo entre universos pessoais de múltiplas naturezas e a extensa mitologia associada ao feminino. A peça Guerreiras foi construída de fragmentos vivos de fatos de gentes do presente, cujas histórias continuam a ser urdidas neste exato momento, porém entremeadas com fios de outras tantas tramas – muitas delas milenares e míticas – vindas de todas as direções do tempo e do espaço. (LYRA, 2010, p.16)

Espetáculo Guerreiras (2009), encenação e dramaturgia de Luciana Lyra. (foto Val Lima)
Em Joana In Cárcere (2005) e Guerreiras (2009), a máscara de Joana manifesta-se, transportando-se enquanto ficção que se atrita à minha vida pessoal, Joana transforma-me. Percebo assim, que esta proposta de criação a partir de si mesmo, independe da estética ou das escolhas poéticas, desta perspectiva o ator adquire certa

autonomia e rechaça uma textualidade que se distancia da vida privada e de aspectos autobiográficos, defendendo um palco onde o criador investiga a si mesmo e representa a vida oculta da consciência. Estamos assim próximos a um teatro, que ao ser experienciado nos traz a ideia de rito de passagem. Joana demarca meu espiral de tempos, interrompe a vida rotineira, performo segundo uma vontade e uma simbologia que não está inscrita em um “manual cultural” (TURNER, 2005). No espaço entre estabelecido por Joana, as regras e normas a serem seguidas dão lugar a uma criatividade não regulada, e exatamente por isso, potencialmente transformadora. É um rompimento com as formas tradicionais de representação do mundo. Um fato extraordinário e relevante para as configurações da vida. Desde Arnold Van Gennep (1978), os ritos de passagem são entendidos segundo três principais pontos, podendo variar dependendo da compreensão dos autores, mas que essencialmente segue essa lógica: a separação, quando o sujeito do ritual se separa de suas antigas regalias e deveres para com seu meio social; a transição, o momento liminar, central na transformação ontológica dos indivíduos; e a incorporação, ou reincorporação a um novo estado de responsabilidades a ser desempenhado. A fase central liminar é justamente um período de tempo em que uma pessoa está entre identidades pessoais. É durante a fase liminar que o trabalho real dos rituais de passagem toma lugar. Nesse momento, ocorrem as transições e transformações especialmente demarcados. Na fase liminar, as pessoas internalizam suas novas identidades e iniciam-se em seus novos poderes. Segundo Richard Shechner (2002), performance propõe a ideia liminar, englobando atuações artísticas, rituais ou cotidianas através de comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que não são absolutamente novas, que tem que repetir e ensaiar. Performance, então, pode ser compreendida como toda atividade onde a própria ação é percebida, em uma relação chave-fechadura com uma audiência. Uma representação composta por uma atuação (play) e um comportamento previamente preparado (restored behavior). A ideia liminar que se propõe a performance, pela perspectiva de Turner e Shechner remonta os ritos de passagem, que influencia decisivamente a antropologia da

performance. Nessa última, a espetacularidade dos eventos performáticos, seu objeto de estudo, presente também nos ritos e mitos afora, acontece pela ocorrência de um estado liminar. É uma liminaridade que consegue romper com a “ordem natural” da sociedade e transformar as performances e os ritos em eventos significativos para os indivíduos e coletividades. A liminaridade é uma forma expressiva que os atos culturais assumem, ela possibilita a criatividade e, por isso mesmo, também a transformação. Voltada às teorias que interpretam a dinâmica social como um espaço de relações sociais, o foco naquilo que os agentes sociais fazem é primordial. Na liminaridade (TURNER, 1982) está o ator, numa fecundidade contínua de ser eu-outros. O ator de f(r)icção, sob a máscara ritual de si mesmo transita da alteridade ao si mesmo, do aquoso ao telúrico, do profano ao sagrado, da vida à arte, mas não deixa de ser o que se é para tornar-se outro, experimenta em si mesmo, a multiplicidade de possíveis eus, em que eu são muitos. Como aponta Schechner, “múltiplos eus” coexistindo em uma “irresolvida tensão dialética” (1985). Em minha experiência com a criação de Joana, procurei perceber-me como este ator de f(r)icção, que coaduna arte e vida em prol da cena vivificada, como aquele que traça paisagens na relação com o outro, longe de seguir uma reta de fatos, revelando-se em pedaços, em justaposições instáveis, onde a realidade não é um dado somente, a realidade transcende, atingindo a minha subjetividade.

TEMPO

São Paulo, manhã do dia 13 de maio de 2013. Numa sala de ensaio, continuo o trabalho. Sento-me em frente ao espelho. Ouço vozes, que comigo dialogam: - Cê tá fugindo de alguma coisa, Joana? - Não. Por quê? - Está perdida? - Não. Por quê? - É o que parece. Cê mora por aqui? - Não. - E o que faz aqui? - Eu não procuro alguém se é o que quer saber. - Está caminhando? - Caminhando pode ser uma palavra. - Movida por? Procura alguma coisa? - Eu procuro por uma floresta. - Você parece tão decidida do seu caminho. Que floresta?

- Disseram que existe por aqui. - Quem te disse? - Eu num sei bem. Eu num sei bem como explicar. - E como é essa floresta? - Ela deve estar na longa lista de coisas que não se explicam. Não estará nas coisas quentes. Nem nas vontades. Na minha vontade. (INHAN, 2013, p.2)
Na continuidade do trabalho com Joana, agora na performance em processo intitulada Joana Apocalíptica (2013), permaneço na fuga da coerência e do sentido comumente atribuído aos fatos da minha vida e da vida numa estrutura social, ao mesmo tempo que pela performance tomo consciência desta vida e da estrutura social. Na performance, aquilo que sou e devo ser (a ordem vigente e sua manutenção) legitima-se naquilo que eu não devo ser (as contradições expostas pelo rito e pela máscara). Por meio da lida com Joana, entendo que me desnudo e muito me aproximo da pulsão teatral artaudiana, a partir da qual se vê o teatro não só um campo de atuação e expressão cultural, mas uma forma de engajamento num processo radical de reconstrução de si. O sentido “ritual” do seu teatro pode ser buscado nesse anseio por uma arte “eficaz” como processo de transformação física e espiritual do homem. Artaud vem conceber uma ideia de teatro estritamente ligado a um movimento de afirmação do sentido sagrado do ritual, que deverá, por sua vez, exercer o contágio do fazer teatral, visualizando o rito não como fenômeno exclusivamente arcaico, mas constantemente re- atualizado nas ações corporais dos indivíduos. Por meio do teatro, engendro uma modificação ontológica inscrita em minha própria trajetória. Desta ótica, a cena torna-se para mim “uma perigosa terapia da alma” (ASLAN, 1994, p. 250), onde expressões diretas de sonhos, obsessões e experiências de vida são oferecidas, liberando as forças subconscientes para que eu retorne transformada do processo cruel de fricção da ficção. Por meio de Joana conduzo-me, e no atrito com a vida pessoal, modelo a máscara. De uma perspectiva grotowskiana, o ator é personagem dele mesmo e pela via negativa, desmascara-se, revelando um ato total, por um autopenetração, sacrificando a parte mais íntima de si mesmo. Enfatiza Barba: Jerzy Grotowski define o teatro como uma autopenetração coletiva. O teatro, se quer reanimar, estimular a vida interior dos espectadores, deverá quebrar todas as resistências, esmigalhar todos os clichês mentais que protegem o acesso ao seu subconsciente. Esse teatro pode

ser comparado a uma verdadeira expedição antropológica. Ele abandona as terras civilizadas para penetrar no coração da floresta virgem; renuncia aos valores da razão claramente definidos para enfrentar as trevas da imaginação coletiva. (BARBA, 2007, p. 100).
Por meio da performance e da mascaram de Joana, também comungo com Grotowski, encaminho-me a enfrentar o mais secreto, o mais escondido de mim mesma. Lançada brutalmente no mundo da máscara, devo, ao mesmo tempo, reconhecer-me e julgá-la, examinando-a à luz da minha própria experiência. O desmascaramento e o ato de assumir a máscara ritual de si mesmo é um fenômeno liminar, transformando a ator de f(r)icção e também o espectador. Ocorrem transportes. Desta perspectiva, como dito, eu não sou Joana, nas eu não sou não Joana, estou inserida num espaço liminar, pela experiência da performance articulo sentidos com o público, onde o espaço e o corpo são os materiais textuais, e este modo de agir reiteraram questões existenciais, estéticas, da ligação entre arte e vida. As performances Joana In cárcere, Guerreiras, Joana Apocalíptica são um continuum, desvelam um passado de experiências articulando-as constantemente com o presente. É a alquimia performática da autobiografia, um ato de construir sentido poético das experiências prévias. Nesta ação, a polifonia está no processo de linguagem e também na ideologia do processo. Joana é polifônica, pois nasce do híbrido, torna-se assim, uma apresentação intencional do si mesma, em sobreposições e estas mesmas sobreposições avançam numa trama com o espectador.


TEMPO

Performance Joana Apocalíptica (2012). De Luciana Lyra. (arquivo pessoal)

Por fim e continuando in process:
Se durante o ato a terra saísse da sua voz e entrasse no meu ouvido me adubando e querendo enraizar um sentido para tudo aquilo eu iria seguir meu trajeto de fuga a pé. Mas não. O que eu tenho agora é pouco. É um desabafo. Um ruído que se acumula e me faz pensar na estrada com um único sentido pra tudo. Eu/ela/eu estou debaixo do sol forte, suando o vestido branco, chutando os pneus furados que fizeram com que o carro parasse no meio do nada, um canavial que assovia baixo querendo se mostrar mais forte do que eu e o que eu/ela/eu quero? (INHAN, 2013, p.3).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTONIN, Artaud. O Teatro e seu Duplo.São Paulo, Martins Fontes, 1993. ASLAN, Odette. O ator no século XX. São Paulo, Editora Perspectiva, 1994. BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. São Paulo, Hucitec, 1995. BORBA FILHO, Hermilo. A donzela Joana. Petrópolis, Editora Vozes limitada, 1966. COHEN, Renato. Performance como Linguagem – Criação de um espaço-tempo de experimentação. São Paulo, Editora Perspectiva, 1989. ______________.Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo, Editora Perspectiva, 1998. COHEN, Renato. Performance e contemporaneidade in anais do colóquio Paul Zumthor – Oralidade em tempo & espaço, 2002. DAWSEY, John. Victor Turner e a antropologia da experiência. São Paulo. Cadernos de Campo, 13:163-176, 2005. GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo, Perspectiva,1987. GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992. INHAN, Ricardo. Joana apocalíptica. São Paulo, 2013, inédito. LIGIÉRO, Zeca. (org.). Performance e antropologia de Richard Schechner. Rio de Janeiro, Mauad, 2012. LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1999. LYRA, Luciana de F. R. P. Guerreiras; texto teatral e trilha sonora original. Recife, Brascolor Editora, 2010.

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