Textos

O mito com suporte intertextual na performance Joana In cárcereLuciana Lyra

O MITO COMO SUPORTE INTERTEXTUAL NA PERFORMANCE JOANA IN CÁRCERE

LYRA, Luciana de F. R. P. de.

Pós-Doutoranda em Antropologia (FFLCH/USP), Mestre e Doutora em Artes Cênicas (IA/UNICAMP), Especialista em Ensino da História das Artes e das Religiões (UFRPE). Pesquisadora do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA/USP) e do Grupo Terreiro de Investigações Cênicas (UNESP). Bolsista FAPESP.

Resumo: Este artigo vem abordar, preliminarmente, um breve panorama histórico acerca do texto dramático em contraposição ao texto performático, apontando o mito enquanto suporte na criação da performance. No sentido de compreender tal analogia, toma-se como exemplo, por fim, a performance Joana In Cárcere (2005), desenvolvida pela pesquisadora em sua investigação de mestrado (UNICAMP).

Palavras chave: Mito – Intertexto - Performance

Abstract: This article has been, preliminarily, addressed a brief historical overview about the dramatic text as opposed to performative text, pointing out the myth as a support in the creation of performance. In order to understand this analogy, becomes at last, for example, the performance Joana In Jail (2005), developed by the researcher in his research Masters (UNICAMP).

Keywords: Myth - Intertext - Performance

O processo artístico, nas suas diversas expressões, carrega as características intrínsecas de mediação e recepção. Como elo entre estas propriedades está a obra artística: um roteiro, um concerto musical, uma forma, uma imagem. Naturalmente o terreno destas relações é complexo, movente e fugidio, pois se opera num locus a que podemos denominar de intersubjetivo, apesar de, em muitas fases da História da Arte, tentar-se imprimir exclusivamente o racional, no sentido de apreender e registrar a sensibilidade, o indizível. 
Na linguagem teatral, por um longo período, a obra artística principal levou o nome de texto, com estrutura em diálogos, conflitos, personagens e situações dramáticas (PAVIS, p. 405), figurando como grande foco da expressão e funcionando como imprescindível ligação entre o público e os atores em cena. No teatro de tradição ocidental, o texto dramático figurou num patamar hierarquicamente superior, gerando reflexos principalmente sobre o trabalho de cenógrafos e atores. Sobre a presença do texto, discorre Jean- Jaques Roubine:
Pode-se, portanto, situar já nessa época (Sec. XVII) o início de uma tradição de sacralização do texto, que marcaria de modo duradouro o espetáculo ocidental, e especialmente o francês. Tradição essa que teve repercussões sobre teoria e a prática da cenografia, o cenógrafo considerando-se um artesão cuja missão – subalterna – consiste apenas em materializar o espaço exigido pelo texto, e sobre o trabalho do ator, cuja arte e aprendizagem terão como enfoque central a problemática da encarnação de um personagem e da dicção, supostamente justa, de um texto. (1998, p. 45)
              
Desta maneira, as formas de teatro que destoaram deste enfoque textual foram excessivamente discriminadas ou até exaltadas como reação natural. As formas de teatro popular, como a commedia dell’arte foi uma delas. Diz Roubine:
Nesse contexto é bem sintomático que as práticas que não pudessem ou não quisessem inclinar-se diante do predomínio do texto, ficassem ao mesmo tempo marginalizadas e admiradas. É o caso, por exemplo, dos italianos que haviam emigrado e difundido por toda a Europa a commedia dell’arte. (...) Os poderes públicos não hesitam em tomar contra eles, ao longo dos séculos XVII e XVIII, medidas destinadas a limitar a sua audiência. Ora, esses comediantes ficaram consagrados como virtuoses da utilização acrobática do corpo, da representação com máscaras, do canto, da dança... (1998, pp. 46-47)

            O próprio Roubine ainda destaca que o fenômeno do textocentrismo permaneceu até o fim da década de 1950 do século passado, não se aceitando quase a noção de polissemia, ou seja, a possibilidade de diversos sentidos sobre uma mesma dramaturgia. Tal sacralização do texto gerou inúmeros movimentos de embate, dentre eles o de reteatralização, que visava diluir o conflito entre texto e espetáculo, dando total autonomia ao trabalho de encenadores, cenógrafos, atores e demais profissionais do teatro na lida com a temática da estrutura cênica.
            Mesmo com a consciência da necessidade de mudança dos paradigmas em relação ao texto, as primeiras investidas dos encenadores modernos ainda foram em direção à sua aptidão para constituí-lo enquanto fonte e finalidade do espetáculo. Contudo, é de se destacar nas primeiras décadas do século XX, artistas como Vsévolod Meyerhold, Gordon Craig e Antonin Artaud, os quais anunciaram, com seus legados, o efetivo retorno da cena à teatralidade, mesmo que o teatro de seu tempo não tenha sido amplamente influenciado pelas suas posições.
            O teatro meyerholdiano visava estabelecer relações com o corpo do ator e o espaço, com seus gestos, jogos de movimentos e o uso sonoro da voz humana, partindo de pesquisas pictóricas e musicais na substituição do texto dramático, o que fez remeter este ‘teatro de teatralidade” a outras linguagens artísticas, como a música, a dança e as artes visuais. Ainda que, diferentemente de Vsévolod Meyerhold, Antonin Artaud não tenha concretizado feitos significativos a partir de seus manifestos, ele se distinguiu como uma espécie de visionário, contrapondo-se ferrenhamente à intelectualização do teatro no ocidente. Em O teatro e seu duplo, questiona-se:
Por que será que no teatro, pelo menos no teatro tal como conhecemos na Europa, ou melhor, no ocidente, tudo que é especificamente teatral, ou seja, tudo que não obedece à expressão através da palavra, ou ainda, se quiserem, tudo aquilo que não está contido no diálogo (e até o próprio diálogo, quando considerado em função de suas possibilidades de sonorização no palco, e das exigências dessa sonorização) seja relegado a um segundo plano? (1993, p. 38)

            Entretanto, é válido afirmar que mesmo eliminando a ideia de texto dramático, Artaud tencionava conservar as palavras e suas possíveis sonorizações no espaço, pois estas poderiam servir de base a uma prática esquecida, usada nos rituais e nas cerimônias mágicas. É o próprio Artaud quem preconiza que o teatro pertence à linguagem da encenação e da metafísica da linguagem, dos gestos, das atitudes, do cenário, da música, do som da voz, distribuindo-se no espaço sob a forma de encantamento; desta forma, o domínio do teatro seria plástico e físico, não psicológico ou verbal. Faz-se mister colocar ainda que Artaud, no seu manifesto ao Teatro da Crueldade propõe temas gerais a serem desenvolvidos nos espetáculos, temas que contenham elementos físicos e objetivos, sensíveis a todos e que estejam integrados numa só linguagem-tipo.
Posteriormente às incursões pontuais dos artistas citados e com o advento do pós-guerra, surge outra tendência de lida diferenciada com o texto em cena, é a do alemão Bertolt Brecht. Uma contribuição original deste artista é o modo diverso como teatralizava o texto, por meio de fragmentos ou episódios, de songs e, muitas vezes, por materiais gráficos (tabuletas, inscrições, projeções, diagramas...), criando o efeito de distanciamento nas encenações de seu agrupamento teatral intitulado Berliner Ensemble. O distanciamento passa a figurar como procedimento estético e político, onde é fomentada uma transformação na atitude aprovadora do espectador, baseada na identificação, numa atitude crítica.
A partir de 1959, com a criação do Teatro-laboratório de Wroclaw, na Polônia, Jerzy Grotowski passa a atrair o foco para as suas experiências, que tinham como fundamento muitos dos pensamentos de Artaud, conclamando um teatro pobre, onde o ator se desvenda, tornando-se personagem dele mesmo. Segundo Grotowski, a essência do teatro é um encontro de uma ação engendrada pelas reações e pelos impulsos humanos, advindos dos contatos entre pessoas. Por meio destas ideias de desvendamento e encontro, Grotowski desenvolve um método que não se apresenta como uma compilação de técnicas para que os atores adquiram habilidades, mas antes se revela como um mecanismo de estímulo à via negativa, onde técnicas de transe e de integração de todos os poderes corporais e psíquicos fazem-se presentes.
            Vale ressaltar que as temáticas de suas experiências evocavam o sentido de autoerradicação, através dos mitos, que para ele, são modelos complexos, com existência independente, inspirando comportamentos e tendências de diferenciados agrupamentos sociais. Em termos grotowskianos, o texto deve ser desenvolvido na via dialética da adoração e da profanação, ou seja, os mitos em que está calcada a memória coletiva são retomados, reativados (adoração), e, da mesma maneira, são confrontados com uma realidade existencial contemporânea que pode pulverizá-los - daí a profanação. Ele mesmo afirma no seu compêndio Em busca de um teatro pobre: “Essas obras me fascinam, porque nos proporcionam a possibilidade de um confronto sincero, um confronto brutal e repentino, entre, por um lado, as crenças e experiências de vida das gerações que nos precederam e, por outro, as nossas próprias experiências e preconceitos” (1992, p. 25).
            Na afirmativa que se segue, Roubine conclui a proposição de Grotowski em relação ao texto: “Este processo de confronto justifica o tratamento do texto. Ele é triturado, remodelado ao sabor das exigências da introspecção e do autodesnudamento empreendidos pelo ator; ou seja, a partir de uma relação que é estabelecida pelo mito (experiência coletiva) e a “vivência” pessoal”. (1998, p.72)
            E continua:
O recurso do texto, na experiência de Grotowski, fica mais claro quando levamos em consideração que o autodesnudamento do ator não deve ser um processo narcisista. Seu objetivo e sua função consistem em fazer ressoar alguma coisa na intimidade mais profunda do espectador, em atingi-lo num plano a que o teatro tradicional não tem acesso. Ora, esse encontro – para empregar mais uma vez a terminologia grotowskiana – não pode basear-se exclusivamente na experiência vital individual do ator. É preciso chegar, portanto, à definição de um campo comum ao espectador e ao ator, de um espaço onde as realidades existenciais possam encontrar-se. Segundo Grotowski, esse espaço é, em última análise, delimitado por um sistema de valores e tabus ao qual toda uma coletividade aderiu há várias gerações, e graças ao qual pôde justamente, definir-se como coletividade específica. Trata-se portanto de uma herança, de uma experiência comum que se cristaliza e se formaliza através dos grandes mitos que fundam ou constituem uma cultura”. (ROUBINE, 1998, p. 71)

            Como resposta a todas estas interferências, a noção de texto sofre profunda modificação, diluindo a autoria e redefinindo as funções dos criadores, entre dramaturgos, encenadores ou atores, a partir da década de sessenta do mesmo século. O texto migra, neste período, da via aristotélica para uma via mais aberta à conjunção de fragmentos sobre um tema, um motivo, sem que esse mecanismo altere a compreensão, que sai do terreno intelectivo para o alcance definitivo dos sentidos.
            A partir deste impulso, toda uma geração de artistas passa a questionar a autoridade textual,rompendo com alguns padrões estabelecidos pelas formas tradicionais. O texto deixa assim de ser matriz inquestionável da encenação, para ultrapassar os limites das convenções. Diversos grupos, neste período, vão aderir a uma espécie de escritura coletiva, onde o autor se dilui no grupo durante a experiência cênica.
            No momento em que a cena rompe com o domínio do texto dramático, fomenta-se um campo para uma arte de maior abertura, com inúmeras possibilidades criativas, fazendo emergir diferentes linguagens como o happening, a performance art, body art, teatro-dança, teatro físico, arte multimídica, instalação e teatro ritualístico, entre tantas outras vertentes que nomeiam manifestações cênicas visuais e antinarrativas. Como expoentes destas linguagens diferenciadas, podemos destacar o diretor Bob Wilson e a coreógrafa Pina Bausch, que ao longo de suas experiências de fronteira abalaram muitas certezas sobre o status da representação teatral e a importância do texto, trespassando o limiar arte/vida, ficcional/real.
            Válido ressaltar que, a maioria dos artistas destas novas linguagens, não vem da seara do teatro, mas das artes visuais ou da dança, alimentando-se do texto, comumente, sob a estrutura performática em fragmentos. No contexto da performance enquanto linguagem, o uso do texto é redimensionado, como já se aponta nas investidas do teatro contemporâneo. A obra artística, na performance, somente é revelada e multifacetada no discurso da cena, provavelmente pela sua característica original de transcendência dos limites entre as demais linguagens. Discorre Cohen:
Ao mesmo tempo, o teatro enquanto linguagem se estabelece como uma forma estrutural com regras – que variam de estilo para estilo – de composição dos signos construídos, assim como a dança ou a linguagem de vídeo também têm as suas. A performance flutua entre essas várias linguagens podendo, como já enfatizamos, ser classificada como uma expressão cênica. Porém, a nível de completitude essa classificação será muito mais abrangente se considerarmos a performance antes como um topos divergente que esporadicamente atravessa fronteiras e ocupa espaços pertencentes ao teatro, do que como uma vanguarda teatral que o espaço de influência dessa linguagem amplia.(2007, p. 160).

            Na performance, a palavra passa a figurar como mais um elemento no discurso de mise en scène, de eminente autoria-criação do performer. Desta forma, o que se comunica revela-se na forma da cena, privilegiando mais a estrutura e menos o conteúdo, a narrativa linear. Diz ainda Cohen:
A eliminação de uma cena mais concreta na performance (“concretitude” no sentido aristotélico, em termos de um espetáculo com início, meio e fim, texto, mensagem etc.) não vai impedir e, ao contrário, vai aumentar a carga dramática, dando à performance a característica de drama abstrato. A eliminação de um discurso mais racional e a utilização mais elaborada de signos fazem com que o espetáculo de  performance tenha uma leitura que é antes de tudo uma leitura emocional. Muitas vezes o espectador não “entende” (porque a emissão é cifrada) mas “sente” o que está acontecendo. (2007, p.66)

            Por esta afirmação, percebemos que a dissolução da narrativa linear não prejudica a apreensão da cena em performance, exatamente por esta evocar mais o terreno dos sentidos, na criação de uma rede de significados, partindo da obra aberta. Desta perspectiva de mutação constante, a narrativa perpassa o operador work in progress, sendo material continuamente transformável.
A destinação aos sentidos advém não só dos elementos de concepção cênica, mas principalmente das temáticas abordadas nas experiências em performance, que transitam no locus do mito. No diálogo com o mito, a performance galga o patamar de metáfora do mundo, uma forma de re-apresentação simbólica que consiste em aprofundar significados da realidade, invertendo seus mecanismos, imitando o que este possui de mais verdadeiro e imutável. O sentido ritualístico encontrado nos estados exacerbados de presença em híbridos experimentos na linguagem da performance revelam as operações no território do mythos,que sedistingue do topos do ordinário cotidiano.
Na linguagem processual da performance, o trabalho de contexto pessoal, imbrincando relações em arte / vida através de dinamismos sobre mitologia / leitmotiv pessoal, delineamento de idiossincrasias e composição de personas autoreferentes, por sua vez, também possibilita o desencadeamento de uma outra percepção e a instauração do campo mítico enquanto sensação (COHEN, 1998, pp. 70-71).  O trânsito temático da performance nas questões fundadoras ou míticas cria uma dialética, na medida em que enredos ambíguos, unificam-se pelo caráter arquetípico do leitmotiv. Sobre isso, discorre novamente Renato Cohen:
Outra contribuição importantíssima é a de, através da exacerbação da “imagem emocional”, se resgatarem nas performances estruturas arquetípicas básicas e situações que pertencem ao inconsciente coletivo de toda comunidade. Dessa forma, nesses anos recentes, algumas performances transformaram-se em alguns dos últimos redutos não contaminados pelos tentáculos do sistema, onde praticantes e platéia mantiveram viva a ritualização de situações antropológicas e práticas essenciais à preservação da psique coletiva da comunidade (2007, p. 160).

            Desta perspectiva, a performance eleva as situações arquetípicas, tomando-as como suporte dos discursos de cena. A narrativa em performance, dialeticamente, fragmenta-se enquanto estrutura e unifica-se enquanto tema coletivo. As fendas da cena e os vazios da narrativa em conjunção com unidade proposta pelo mito produzem um processo de ordenação na ambiguidade, que habita um terreno anterior a qualquer razão lógica. A narrativa mítica então se atualiza pela performance (rito) na exacerbação do momento presente, do imprevisível ligado ao momento da re-apresentação.
            O mito vai, assim, servir como aporte ou leitmotiv principal para a cena em performance, distribuindo-se em diversos outros leitmotive que funcionam como vetores no todo da narrativa. São estes leitmotive secundários que, de certa forma, organizam as emissões sobre o leitmotiv principal, criando uma tecedura de diversos influxos e, por isso, intertextual.
Na performance intitulada Joana In Cárcere, desenvolvida durante investigação de mestrado da pesquisadora (UNICAMP/2005) e inspirada pelo preenchimento mítico-narrativo, a guerreira Joana d’Arc surge como suporte para a intertextualidade (PAVIS, p. 213), que postula a ideia de que um só ’texto’ pode ser compreendido pelo jogo dos textos que o preenchem e que, por transformação, influenciam-no.
Importante lembrar que a gênese de Joana In Cárcere deu-se anteriormente ao processo do mestrado, já em 2001. Ao ser solicitada uma cena para finalização dos conteúdos de um curso de direção teatral na Universidade Federal de Pernambuco, a pesquisadora partiu de uma imagem que como “ao acaso”, revelava-se em sonhos recorrentes: Uma mulher acorrentada sobre um cavalo, no enfrentamento de toda uma sorte de homens, tentando empunhar espada e estandarte por um ideal – a liberdade.
Lidando com o que a vida despontou “casualmente”, a pesquisadora fez o que Campbell discorre sobre tomar como se tivesse sido sua intenção; e com isso invocar a participação de sua vontade (1990, p.171). Percebeu que mesmo oriunda de constelação interior de maneira “casual”, a imagem, que depois tratou como mítica, pulsava por si, traçando seu caminho nela mesma, e que diante desse fato, deveria segui-la, convocando-se, aos poucos, a ser sua “regente oficial”.
            Num processo de maior elaboração imagética, a pesquisadora foi conduzida do arquétipo da heroína guerreira revelada oniricamente à energia específica da heroína Joana d’Arc, que passou a servir de modelo de inspiração maior para a jornada que começou a empreender artisticamente. Desta forma, essa mitologia se revelou e passou a ser mote de preenchimento do exercício cênico a ser instaurado no curso de então. Adentrou-se, no que se pode chamar de campo da mitologia pessoal.
Faz-se mister entender, que a Joana emergente, não era a Joana francesa da História, mas uma Joana pernambucana, uma Joana brasileira, roubada à terra gloriosa de Olinda (BORBA FILHO, 1966, contracapa), carregando signos da cultura original da pesquisadora, nos movimentos de trupés ou mesmo no discurso da cena, que mesclava, falas em rima, correntes a sons de rabeca, numa mise em scène eminentemente intertextual.
            A intertextualidade em Joana é base e procedimento na operação das diversas combinações sobre este mesmo motivo, criando o que podemos chamar de “colcha de retalhos” de inter-relações. Esta colcha de retalhos textual aproxima-se, sobremaneira, da concepção de texto contemporaneamente postulada pelo teatrólogo Eugênio Barba:
             
A palavra ‘texto’, antes de significar texto falado ou escrito, impresso ou manuscrito, significava ‘tecedura’. Neste sentido não há espetáculos sem texto. O que diz respeito ao ‘texto’(à tecedura, ao fio) do espetáculo pode ser definido como “dramaturgia”, isto é, drama-ergon, o trabalho das ações. A maneira pela qual as ações agem é o enredo (1995, p. 241).
 
Intertextualizar, desta perspectiva,não significa elaborar uma “colagem”, que é uma construção de menor potência, onde simplesmente agrupam-se cenas por associação, mas é, antes de tudo, um processo de hibridização, que reconstrói textos, citações, fragmentos, narrativas, estabelecendo redes de significações com vários planos de leitura (literal, mítica, simbólica).
A performance Joana In Cárcere construiu-se por meio de imagens referenciais de cunho eminentemente individual, ativada pelo campo da mitologia pessoal. Renato Cohen discorre que a imersão no campo mítico pessoal dá-se a partir do delineamento de personas autoreferentes (COHEN, 2007, p. 70), e enfatiza: “O performer parte de referências da pesquisa, indicações do diretor / roteirista, vivências de laboratório para construir uma trajetória, que vai estar extremamente apoiada em sua idiossincrasia e percurso pessoal” (2007, p. 81).
            Naturalmente, não só a experiência artística pode ser responsável pela abertura ao campo da mitologia pessoal. Tais mitos individuais surgem também em sonhos, vivências místicas e processos psicoterapêuticos, na ativação do já mencionado inconsciente. Sigmund Freud, em sua Interpretação dos Sonhos (1969), já atentava para a existência de estruturas míticas na psique pessoal, que se transfiguravam em imagens oníricas e se serviam de imagens-guia na compreensão de neuroses ou mesmo no estímulo ao comportamento criativo de seus pacientes.
Carl Gustav Jung, posteriormente a Freud, também veio a apontar o desvendamento do inconsciente pessoal na revelação de problemas psíquicos e no desenvolvimento da imaginação criativa. Para Jung, o processo a que chama de individuação é a descoberta do mito como força propulsora. O desvendamento do mito pessoal é assim, a realização da vontade inconsciente, o nascimento do indivíduo na pessoa.
Torna-se importante ressaltar, que ambos os pesquisadores, com suas específicas teorias, enfatizaram a existência de estruturas coletivas subjacentes à psique individual, formadas por conteúdos de ideação, traços de memórias de experiências de gerações passadas. A psique individual estaria assim calcada em um a priori universal, arquetípico, para Jung chamado de inconsciente coletivo.
            Tanto Freud, quanto Jung trabalharam na indução da natureza psíquica por meio das fantasias e dos pensamentos inconscientes. Os procedimentos de Jung eram semelhantes à técnica freudiana de livre associação da imagem onírica, só diferenciava-se pelo grau de liberdade com que Jung deixava a imaginação trabalhar, na medida em que encorajava seus pacientes a desenvolverem com maiores detalhes o material da fantasia. Diz ele: “De conformidade com o gosto o os dotes pessoais, cada um poderia fazê-lo de forma teatral, dialética, visual, acústica, ou em forma de dança, pintura, desenho ou modelagem” (JUNG apud STEIN, 1998, p. 88). Segundo Jung, nas experiências com a fantasia e a interpretação dos sonhos por meio da arte, chegamos ao inconsciente individual, desvendando eventos particulares da vida do paciente, e ao inconsciente coletivo, de onde podem ser elaboradas significâncias de contexto comunal através de analogias mitológicas.
Percebe-se, com todas estas reflexões, que, nos processos terapêuticos, a arte aparece como poderoso mecanismo de abertura aos conteúdos inconscientes e que de maneira inversa a arte pode vir a se valer de técnicas terapêuticas de desvendamento de mitologia pessoal para a produção de trabalhos artísticos de contextos autoreferentes, como técnicas de Stanley Kripnner, James Hillman e do trabalho de figuras do inconsciente de Jung (COHEN, 1998, pp. 76,78).
Foi assim, por meio da conjunção de experimentos de técnicas e vivências no campo artístico (laboratórios de criação) e humanístico (processos psicoterapêuticos e experiências cotidianas), que a pesquisadora foi arrematada pela imagem da Joana, tomando como um mito pessoal de significado, e que se tornou leitmotiv da prática cênica da citada pesquisa.
Na interlocução com a mitologia pessoal, por meio da guerreira d’Arc, pôde-se iniciar a trajetória interior que derivou do estado mítico pessoal para uma pulverização em configurações universais, estabelecendo diálogo com o grande texto da cultura por meio da interelação com manifestações de tradição, como o Cavalo Marinho , brincadeira popular com maior conjunto de sinais na cena de Joana In Cárcere, reafirmando a reflexão de Campbell que: “A vida e a jornada interior não são de modo algum uma aventura isolada, meramente idiossincrática, mas no melhor dos sentidos um voo misterioso que vai dos estreitos limites de uma vida pessoal para o grande domínio dos universais” (2002, p.258).
De acordo com Carl Jung (apud STEIN, 1998, p. 97), além de outros complexos, a psique humana é formada por um par de subpersonalidades divergentes e complementares: a sombra e a persona. Ambas foram denominadas na sua relação com objetos concretos na experiência sensorial. A sombra é a imagem de nós próprios que desliza quando caminhamos em direção à luz, símbolo das necessidades proibidas que é nosso “eu outro”. A persona, o seu oposto.
            Na performance enquanto linguagem cênica, como ressalta Renato Cohen, o termo persona é amplo e toma o lugar da personagem do teatro convencional, designando uma galeria de personagens a partir de uma só figura-fundo, o performer em sua máscara ritual, advinda do campo da mitologia pessoal. Sobre isso, afirma Cohen: “A persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico (exemplo: o velho, o jovem, o urso, o diabo, a morte etc). A personagem é mais referencial.” (2007, p. 107)
Como observa Jacó Guinsburg, a persona também é a cristalização de alguma marca no plano representacional de estados imaginários ou formalizados. Carrega em relação ao conceito de personagem (referencial, textual), um maior grau de fugacidade, transitoriedade. A persona investe-se também como suporte de galeria de figuras, de composições não-miméticas, de estados cambiantes (conceito junguiano) (1998, p.84).
            Nos experimentos em performance, geralmente, as personas surgem a partir de um processo de “extrojeção” (da forma) para posteriormente haver uma tecedura de composição e preenchimento. Diz Cohen: “O trabalho do performer é “levantar” sua persona. Isso geralmente se dá pela forma, de fora para dentro (a partir da postura, da energia, da roupagem desta persona).” (1998, p. 84)
            Foi por intermédio do trânsito entre a “introjeção” (a pulsão onírica - o sonho) e a “extrojeção” (a forma - o mito) que surgiu Joana, enquanto persona autoreferente. Joana foi “levantada” através de movimentos corporais em laboratórios de criação, bem como de imagens arquetípicas advindas de recorrentes sonhos e produções visuais, como observado, em anteriores reflexões.
            Desta forma Joana, enquanto persona, passou a ser leitmotiv da performance, que não se atém, como visto, a referenciais históricos ou construções psicológicas de personagens. Joana, por esse prisma, é híbrida e abrangente, carregando em si - estados de passagem, seres mitológicos, corporificações e figurações não-realistas. Joana, na função-personaleitmotiv intertextual, sendo resultado de uma combinação de influxos advindos de imagens e textos sobre o tema, e fundamentalmente do cruzamento entre a polifonia cênica da performance e o universo da cultura pernambucana, com suas manifestações. O suporte ritual autoreferente, transfigurado em Joana d’Arc, migra ou se metamorfoseia para diversas outras personas, faces de uma só máscara; são elas: a menina, a negra, a santa, o boi, a lavadeira, a selvagem, a guerreira, a condenada (encarcerada), a sombra, a madrinha, o algoz, o inquisidor, a igreja, o moleque.
             Por fim, entende-se que a necessidade da pesquisadora de viver uma experiência performática, articulou sentidos, onde o espaço e o corpo são os materiais textuais, e este modo de agir reiteraram questões existenciais, estéticas, da ligação entre arte e vida. Joana In cárcere desvelou um passado de experiências para que estas pudessem se articular ao presente de cada encontro com o público, resultando na textura cênica. É a alquimia performática da autobiografia, um ato de construir sentido poético das experiências prévias. Nesta ação, a polifonia está no processo de linguagem e também na ideologia do processo. Joana é polifônica, pois nasce do híbrido, torna-se assim, uma apresentação intencional do si mesma, em sobreposições. Na construção da intertextualidade da performance Joana In Cárcere, cria-se um policromia fundada no mito, que diferente do texto dramático convencional, constelações de valores, formas, práticas e imagens são singulares ao ser da própria artista-pesquisadora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTONIN, Artaud. O Teatro e seu Duplo.São Paulo, Martins Fontes, 1993.
BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. São Paulo, Hucitec,1995.
BORBA FILHO, Hermilo. A donzela Joana. Petrópolis, Editora Vozes limitada, 1966.
CAMPBELL, Joseph. Mitologia na vida moderna. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Ventos, 2002.
_________________. O Poder do Mito. São Paulo, Palas Athena, 1990.
COHEN, Renato. Performance como Linguagem – Criação de um espaço-tempo de experimentação. São Paulo, Editora Perspectiva, 1989.
______________.Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo, Editora Perspectiva, 1998.
FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago, 1969.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo, Perspectiva,1987.
GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992.
LYRA, Luciana de F. R. P. Guerreiras e Heroínas em Performance; Da artetnografia à Mitodologia em Artes Cênicas. 2011. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2011.
______________________. Mito Rasgado; Performance e Cavalo Marinho na cena in processo. 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2005.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo. Editora Perspectiva, 1999.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1998.
STEIN, Murray. Jung o mapa da alma – Um introdução. São Paulo, Editora Cultrix, 1998.


Os songs (músicas de intervenção) são introduzidas como efeito de ruptura da ação. Suspensão.

Do grego Aristóteles, da dramaturgia clássica sujeita a um enredo.

Santa guerreira do calendário cristão, nascida na França em 1412, aproximadamente, melhor retratada no capítulo III.

Denominação utilizada para designar o espetáculo de Bumba-meu-boi em Pernambuco e na Paraíba.

<< Voltar