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Narrativa dos Afogados: Artetnografia no processo de criação da performance Homens e CaranguejosLuciana Lyra

Narrativa dos Afogados: Artetnografia no processo de criação da performance Homens e Caranguejos

Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra (USP/SP)

Em investigação de doutorado em Artes Cênicas (UNICAMP/2011), vinculada ao projeto temático do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA/USP), a pesquisadora cunhou o conceito de ARTETNOGRAFIA, que, se associa, intrinsecamente, a estratégias antropológicas contemporâneas de atuação em campo, configurando-se como prática realizada por artistas cênicos ao se deslocarem aos locais onde vivem aqueles que intentam pesquisar para que nesta interação polifônica e subjetiva possa promover a criação da cena performática. Este trabalho atrelado ao programa de Pós-Doutorado em Antropologia da FFLCH/USP e subsidiado pela FAPESP, tem intuito de apresentar a experiência artetnográfica, orientada e dirigida atualmente pela pesquisadora, com atrizes provenientes da Unesp-Sp, junto à comunidade da Ilha de Deus, às margens do manguezal urbano de Recife-PE, no fomento à criação da performance de título Homens e caranguejos. A comunicação visa, especialmente, abordar a criação dramatúrgica desta performance, que parte de depoimentos e narrativas colhidos na comunidade pelos artistas envolvidos na criação, num processo complexo de afetação. Da trança artetnográfica urdida entre artistas e comunidade pretende-se desvelar Antropologia como Teatro, não uma Antropologia como reflexão do Teatro.

 

O trabalho do ator configura-se na antinomia: estar em cena, ao mesmo passo que interioriza o papel do espectador, sob a percepção concomitante, do mundo e de si mesmo. Uma capacidade de atuar em constantes desdobramentos, colocando-se na posição de espectador do mundo, do qual é impossível esquivar-se totalmente. O antropólogo, analogamente ao ator, transita entre dois mundos: o seu próprio e o dos outros, os grupos com os quais trabalha em suas pesquisas etnográficas. Entretanto, esta constante dialogia gera ambigüidades e transbordamentos, especialmente no que concerne à transmissão das mensagens captadas em campo. De acordo com Clifford Geertz, o olhar do antropólogo parece estar longe da imparcialidade, afirmando que toda etnografia é em parte filosofia e em parte confissão (2008, p. 19). 

Sendo assim, a interação com a alteridade, marca o teatro e a antropologia, pois é no intercâmbio, na superposição polifônica entre eu e o outro que se revela o encontro, condição basilar que rege as ações dos dois agentes da cultura: o ator/artista e o antropólogo. Esse encontro com o outro sempre se configura a partir de princípios, tanto subjetivos, quanto objetivos, princípios estes que acabam por capacitar tanto o ator como o antropólogo a exercerem seus ofícios.

No caso da antropologia cultural, o trabalho de observação, análise e vivência desta alteridade dá-se pela ação da etnografia, como citado acima em alusão a Geertz, no entanto, antes do final do século XIX, a etnografia traduzia-se como ação desmembrada da antropologia, pois a esta última cabia construir teorias gerais sobre a humanidade, enquanto que a primeira, era o campo responsável por descrever e traduzir os costumes de uma sociedade.  Sobre o status do etnógrafo neste período, reforça James Clifford:

Ao fim do século XIX, nada garantia, a priori, o status do etnógrafo como o melhor intérprete da vida nativa – em oposição ao viajante, e especialmente o missionário e ao administrador, alguns dos quais haviam estado no campo por muito mais tempo e possuíam melhores contatos e mais habilidade na língua nativa (2002, p. 22).

A partir do século XX, a etnografia começa a exercer função central nos estudos antropológicos. Com Malinowski aprende-se que o antropólogo deve viajar às terras do outro para observá-las como objetos de estudo, participando das culturas e se despojando de si mesmo neste processo de observação. Diz ele:

Ao meu ver, um trabalho etnográfico só terá valor científico irrefutável se nos permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas, e, de outro as interferências do autor, baseadas em seu próprio senso e intuição psicológica (1976, p. 22). 

A partir dos anos de 1970, com o aparecimento da antropologia interpretativa, a cultura passa a ser vista como um texto, uma tessitura de significados elaborados socialmente, no entanto, ao antropólogo caberia fazer uma leitura de segunda ou terceira mão da cultura estudada, pois são os nativos que fazem a leitura de primeira mão da mesma. Do ponto de vista da antropologia interpretativa, o texto etnográfico é  sempre parcial e provisório.

 Para a Antropologia da Performance, topos que ganha relevância a partir da década de 60 e 70 deste século, com os estudos de Richard Schechner e Victor Turner, a perspectiva etnográfica de Geertz vem a ser fundamental, na medida em que é com sua abordagem que os praticantes da etnografia puderam exercitar a imersão em campo partindo de uma descrição densa, sem o compromisso do relato fático ou da reconstituição fiel das comunidades etnografadas, mas com o compromisso de uma interpretação caleidoscópica, direcionada para a busca de estruturas complexas de significação. 

Na busca em dar luz a estas questões, o antropólogo é provocado pela reflexividade a que se referia Turner: ser sujeito e objeto de si mesmo (apud DAWSEY, 2005). Regido pelo mito de Hermes, o pesquisador parece transitar entre dois mundos na relação com a alteridade, evocando a imagem de um círculo hermenêutico nesta interação. Saltando-se em duas direções, para trás e para frente, entre um todo percebido através das partes que o atualizam e as partes concebidas através do todo que as motiva, procuramos transformá-las, através de um tipo de movimento intelectual perpétuo, em explicações uma da outra (GEERTZ apud DAWSEY, 2004).

Na chegada da década de 80, vão emergir outros problemas ligados a questões  discursivas e metodológicas presentes na feitura das etnografias, desembocando numa renovação das investigações marcadas pelo experimentalismo etnográfico. Desta maneira, a antropologia pós moderna proclama uma etnografia transdisciplinar que não deve abstrair-se de sua dimensão artístico-política e sim atender ao mundo contemporâneo complexo e fragmentado. A etnografia surge, a partir daí, como um processo de dialogia polissêmica, uma troca, que pressupõe interculturalidade, onde também o antropólogo discorre sobre si e sobre sua própria cultura. 

No que tange ao teatro, o encontro com a alteridade marca sua existência enquanto manifestação humana, o ator é formado para lidar sempre com um outro, especialmente com o espectador. Na História do Teatro é de se observar, contudo, que a busca de interlocução com este espectador, levou ao ator, no contexto ocidental, à ideia de construção de personagens ficcionais, distanciando-se de suas idiossincrasias, em detrimento da revelação de um texto dramático. Sobre a presença do texto, discorre Jean- Jaques Roubine:

Pode-se, portanto, situar já nessa época (Sec. XVII) o início de uma tradição de sacralização do texto, que marcaria de modo duradouro o espetáculo ocidental, e especialmente o francês. Tradição essa que teve repercussões sobre teoria e a prática da cenografia, o cenógrafo considerando-se um artesão cuja missão – subalterna – consiste apenas em materializar o espaço exigido pelo texto, e sobre o trabalho do ator, cuja arte e aprendizagem terão como enfoque central a problemática da encarnação de um personagem e da dicção, supostamente justa, de um texto. (1998, p. 45)

Semelhante ao campo antropológico, no século XX, também se pode observar transformações dos paradigmas teatrais, o próprio Roubine destaca que o fenômeno do textocentrismo gerou inúmeros movimentos de embate, dentre eles o de reteatralização, que visava diluir o conflito entre texto e espetáculo, dando total autonomia ao trabalho de encenadores, cenógrafos, atores e demais profissionais do teatro na lida com a temática da estrutura cênica.

No momento em que a cena rompe com o domínio do texto dramático, fomenta-se um campo para uma arte de maior abertura, com inúmeras possibilidades criativas, fazendo emergir diferentes linguagens como o happening, a performance art, body art, teatro-dança, teatro físico, arte multimídica, instalação e teatro ritualístico, entre tantas outras vertentes que nomeiam manifestações cênicas visuais e antinarrativas, que acabam por abalar muitas certezas sobre o status da representação teatral e a importância do texto, legitimando ao ator o ato de trespassar o limiar arte/vida, ficcional/real. Desta maneira, o contexto do teatro contemporâneo acaba por dar passagem às pesquisas do ator sobre si mesmo, assim como, a investigações de campo, relacionadas a estes próprios atores, onde eu e o outro são o mesmo numa relação complexa, em nome da quebra de todas as formas de representação e atuação naturalista.

Foi ao entrar em contato com pesquisas antropológicas, a partir do ano de 2004, por meio das discussões do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA), grupo que realiza o projeto temático Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual (FAPESP),eu, artista de formação, comecei a detectar estes aspetos comuns entre antropologia e teatro. Se, numa abordagem pós moderna, o trabalho do antropólogo está longe da imparcialidade, o que dizer do trabalho do ator-etnográfo contemporâneo ou artetnógrafo, como intitula, lidando com níveis profundos do imaginário cultural, trazendo-os para a cena performática? Como poderia o ator criar interlocuções com a antropologia para que possa por meio dela compreender sua ação em campo e os desdobramentos para a cena? Quais as especificidades do trabalho artístico no diálogo com o outro por meio da pesquisa etnográfica ou como aqui se intitula, artetnográfica? 

Em minha experiência com a comunidade de Tejucupapo-PE, entre 2007 e 2010, que veio a resultar em tese de doutorado em Artes Cênicas (UNICAMP) e no espetáculo Guerreiras (Cia. Duas de Criação), procurei abordar este artetnógrafo como um ator de f(r)icção, que coaduna arte e vida em prol da cena vivificada,  uma espécie de cartógrafo que vai traçando paisagens na relação com o outro, longe de seguir uma reta de fatos, revelando-se em pedaços, em justaposições instáveis, onde a realidade não é um dado somente, a realidade transcende, atingindo a subjetividade dos sujeitos, ou seja, esse princípio cartográfico vai além do traçado de paisagens materiais. Como aponta Suely Rolnik:

Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos - sua perda de sentido - e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos (2007, p. 23).

Desta perspectiva, este artista que comecei a entrever aproxima-se, sobremaneira, da ideia de antropólogo investigada por Geertz e mais de antropólogos pós modernos, que, começaram a olhar o próprio texto etnográfico como objeto de interpretação e o trabalho de campo como espaço de troca de experiências. Um artista, que, como o antropólogo, fomenta a construção de pontes entre humanidades, sendo eles transmissores das mensagens do campo, mas também portadores de questionamentos idiossincráticos.

Da mesma maneira que o antropólogo vinculado à proposição etnográfica polifônica e complexa, tem suas estratégias de atuação, propõe-se, com a Artetnografia, que o artista embebido da interlocução com a antropologia e também com experiências concernentes à arte, possa fazer valer de uma via de acesso ao outro, com procedimentos de ação artística-etnográfica, onde antropologia se faça teatro, não simplesmente, reflita teatro, e, teatro se faça antropologia.

No contato entre as mulheres heroínas de Tejucupapo e as atrizes-artetnógrafas, na experiência de Guerreiras, estabeleceu-se uma rede polifônica, onde diferentes narrativas entraram em justaposições numa cartografia que se transformou em dramaturgia e esta, por si já é parte da etnografia. Sobre esta trama, diz o teatrólogo Newton Moreno: 

Guerreiras desvela o aprendizado do humano na beira do mangue com respaldo das deusas. Um passeio muito interessante entre a fonte histórica (a resistência e luta das mulheres de Tejucupapo), a pesquisa de campo com as mulheres que habitam a região e o relato de suas lutas diárias, o campo de deusas e mitos que ampara milenarmente todas estas mulheres e o canto de guerra de cada atriz, sensivelmente inserido no Movimento da Guerra. Mesmo que se perca onde um começa e o outro termina, esta escrita multifocal nos permite uma viagem, um passeio, uma sugestão de guerras do feminino (apud LYRA, 2010, p.12).

O resultado dramatúrgico em Guerreiras é assim, um caleidoscópio de fragmentos de narrativas, trabalhadas por meio de um somatório entre: histórias-jornadas das mulheres de Tejucupapo, histórias-jornadas de deusas e guerreiras de todos os tempos, além de histórias-jornadas pessoais das atrizes, revelando um tríplice plano de ações: plano histórico, plano mítico e o plano pessoal, que se fez revelar no rito da performance. Também sobre esta criação em rede diz o dramaturgo Luiz Felipe Botelho:

Os clichês que rondam esse tema foram deixados de lado pela própria dinâmica do processo de criação desse projeto, no qual a autora, as atrizes-criadoras e demais criadores envolvidos, a partir das vivências na comunidade de Tejucupapo, estabeleceram um diálogo entre universos pessoais de múltiplas naturezas e a extensa mitologia associada ao feminino. A peça Guerreiras foi construída de fragmentos vivos de fatos de gentes do presente, cujas histórias continuam a ser urdidas neste exato momento, porém entremeadas com fios de outras tantas tramas – muitas delas milenares e míticas – vindas de todas as direções do tempo e do espaço (apud LYRA, 2010, p. 18).

A partir de 2011, dando continuidade a pesquisa sobre a Artetnografia, parti para nova construção performática, propondo agora a imersão do Coletivo Cênico Joanas Incendeiam (UNESP) na comunidade da Ilha de Deus, nos arredores do bairro de Afogados, em Recife-PE, no sentido de potencializar imagens múltiplas do romance Homens e Caranguejos (2007), do geógrafo pernambucano Josué de Castro.

Na experiência com a comunidade da Ilha de Deus, como em Tejucupapo, realidade e ficção geraram um campo de f(r)icção. Os anos sessenta do último século decorrido e relatado no livro tornavam-se presentes na experiência das comunidades atuais. Imagens do passado de um Josué romanceado se articulam a um presente, eminentemente real e, a um só tempo, performático. 

Esta articulação f(r)iccional entre atrizes, comunidades e romance, encontrou aprofundamento nas experiências mitodológicas  em laboratórios de criação, onde, após experiências em campo, criou-se uma mandala dramatúrgica, montada a partir dos experimentos corporais e de trechos dos livros de artista , nos quais imagens reais e ficcionais deslocaram-se, revelando os espaços e personagens reais e ficcionais vivenciados pelas atrizes em processo. Neste trânsito, elegeu-se a lente dos mitos para uma densa abordagem, desvelando uma dramaturgia em fragmentos justapostos, onde o menino João Paulo, de Josué, é ampliado, protagonizando a aventura heróica de Ícaro no sonho de sair do labirinto, de todos os Meninos que sonham com um mundo sem desigualdade, onde Zé Luís, o pai, é um Dédalus em contínua construção e ocupação da terra prometida.

Na dramaturgia de Homens e Caranguejos, fruto da contaminação entre comunidade e artetnógrafos, narrativas várias encontram-se numa encruzilhada, acabando por gerar um processo de textualização-encenação, que tem por centro, uma tessitura inteira, um texto na acepção cunhada por Barba: 

A palavra “texto”, antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou manuscrito, significa “tecendo junto”. Neste sentido não há representação que não tenha “texto”. Aquilo que diz respeito ao texto (a tecedura) da representação pode ser definido como “dramaturgia”, isto é, drama-ergon, o trabalho das ações na representação. A maneira pela qual as ações trabalho é a trama (1995, p. 68).

Com influências surrealistas, a Artetnografia trata os relatos de campo nos livros de artista, como colagens alógicas de imagens, deslocando-se da ideia de descrição literal, para aproximar-se das recombinações, reinvenções de realidades, que se desvelam na dramaturgia-encenação. Escrita em pedaços, a dramaturgia de Homens e caranguejos apresenta-se etnográfica, amarrando diversas partes, intituladas de movimentos. Um mosaico de máscaras e mitemas compondo um efeito de quebra-cabeças de imagens, que exigiram das artetnógrafas a ação performática de junção de suas peças. 

Na performance há efetivamente a materialização da encruzilhada de narrativas proposta pela dramaturgia, a dramaturgia, por sua vez, foi gerada a partir da encruzilhada das narrativas performatizadas em laboratórios, advindas da afetação do campo. Como uróboros, o processo revela-se sob o signo da rede complexa entre campo, dramaturgia e encenação, um processo de retroalimentação e autofecundação. Homens e Caranguejos traduz-se assim, como um texto performativo, ou seja, aquele que é gerado pela performance, ao mesmo tempo proporcionando-a, criado nela.

Nesta composição, entende-se que não há uma “colagem”, onde simplesmente agrupam-se cenas por associação, mas é, antes de tudo, um processo de hibridização, que reconstrói textos, citações, fragmentos, narrativas, estabelecendo redes de significações com vários planos de leitura (literal, mítica, simbólica) onde o verbal é apenas um dos elementos. 

Abaixo, em trecho da dramaturgia, pode-se perceber paisagens de campo mesclando-se a discursos das artetnógrafas sobre a morte após a enchente, na revelação de uma polifonia de vozes:

Um silêncio opressivo paira sobre a paisagem dos mangues. As Idalinas riscam, com giz, corpos no chão. Em suas mãos, pedras. A ação acontece uma em cada momento. Canta a ressaca em boca chiusa.

 

IDALINA - Jogo uma pedrinha no chão como se fosse amarelinha. Desenho no chão uma linha que chega até o ponto que está a pedrinha. Assim se repete para cada morte que conto (desenha aos poucos um corpo morto com giz no chão). Meu vô João foi a minha primeira experiência de amizade verdadeira. Ele me buscava na escola todo dia, voltávamos andando, conversando, ele me deixava correr. Quando meu vô João morreu foi mesmo um baque, ele havia morrido em matéria e essa morte não teve como não ser consciente. A morte é o fim de algo que estava vivo e por algum motivo chegou ao fim. Mas o que está vivo lateja, ressoa, são ondas como pedras jogadas n’água. 

 

IDALINA I – (continua na ação com o giz, mais um corpo morto é desenhado) Sente cheiro do ar fedido que paira? É que nem todos sentem. Eu trouxe para no meu corpo o cheiro daquele rio. Cheiro que me lembra a casa da minha vó Dora, que mora até hoje às margens de um córrego.

 

IDALINA III – (outro corpo, um último) Eu queria esquecer qual era o meu nome. De pés descalços pra que ninguém esperasse nada de mim, nem eu mesma. A vida tinha melhorado tanto quando minha mãe conseguiu se inscrever numa instituição alemã que dava uma cesta com: 9 litros de óleo, ½ saco de farinha, ½ saco de feijão. Agora estou amuada como o rio.

 

IDALINA II – (mais um corpo) Quando a cheia cresce, suas águas invadem a terra toda com a violência de uma paixão. Assim foi quando perdi meu irmão, na cheia, como a soda corroendo o estômago. Quando o furor de posse se esgota, as águas baixam, deixando à mostra todos os estragos desta paixão violenta, mortos também ficamos, naqueles cacos de espelho que por vezes moramos, toda a obra de destruição da cheia marcada na pele da terra e na pele da gente. 

 

Canto da Ressaca. Três das mulheres tiram suas saias, são agora homens, acossam a primeira. A história da negra Idalina é contada (LYRA, 2012).

 Como se pode atentar, o artetnógrafo, ator de f(r)icção, longe de entender este outro como fonte de criação artística, que jorra incessante no estímulo à mágica inspiração, absorve-o como espelho d’água, que vai ao fundo e às margens, entendendo-se todos os sujeitos como partes de um processo ruidoso, onde eu e outros misturam-se alquimicamente. 

 O processo artetnográfico destaca-se assim, como uma ação articulada por tensões entre os campos das artes e da antropologia, como uma mestiçagem de áreas, que fazem vir à tona camadas diversas de um mesmo discurso artetnografadas em estímulo e desemboque da cena. Da perspectiva da Artetnografia, o mundo da ciência acadêmica ou o mundo áurico da arte é estilhaçado em favor da troca com o mundo dos saberes gerados fora da academia em todas as suas dimensões. A Artetnografia só pode existir na base da troca e de todos os ruídos que as relações com a alteridade possam suscitar. 

Por fim, no desenrolar deste conceito evoca-se a íntima relação do processo de Homens e Caranguejos com a geografia vegetal a qual se filia: o manguezal. O mangue com suas raízes e torções, propõe-nos diversas possibilidades de caminhos que se justapõem na navegação, num tecido impregnado de experiências transvaloradas, onde histórias e geografias várias misturam-se indistintamente. Artistas e Comunidade entrelaçam-se como as raízes do manguezal, numa mestiçagem de afetos e territórios que se contaminam como a peste artaudiana (ARTAUD, 1993), tendo o teatro como palco do devaneio bachelardiano (BACHELARD, 2006).

 

BIBLIOGRAFIA

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BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo, Martins Fontes, 2006.

BARBA, Eugenio e SARAVESE. A arte secreta do ator. Campinas, Editora da Unicamp, 1995.

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CLIFFORD, James. A experiência etnográfica; antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2002.

DAWSEY, John Cowart. Victor Turner e a antropologia da experiência. São Paulo. Cadernos de Campo, 13:163-176, 2005.

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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC Editora, 2008.

LYRA, Luciana de Fátima Rocha Pereira de. Guerreiras e Heroínas em processo: Da artetnografia à Mitodologia em Artes Cênicas. 2010. Tese (Doutorado em Artes  em Artes Cênicas), Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas-SP, 2011.

_________________________________. Guerreiras: texto teatral e trilha sonora original. Recife-PE, Brascolor Editora, 2010.

____________________________________. Mito Rasgado; Performance e Cavalo Marinho na cena in processo. 2005. Dissertação (Mestrado em Artes), Instituto de Artes. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas-SP, 2005. 

LYRA, Luciana. Homens e caranguejos. Recife-Campinas. Inédito, de 2012.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo, Abril, 1976.

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ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1998.

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