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Mythos-Guia-Corpos-na-BuscaLuciana Lyra

Mythos-Guia-Corpos-na-Busca

Vivência no Núcleo de Experimentação corporal da ELT

Por Luciana Lyra 

 

“Em se tratando do meu próprio corpo ou de algum outro, não tenho nenhum outro meio de conhecer o corpo humano senão vivendo-o. Isso significa assumir total responsabilidade do drama que flui através de mim e fundir-me a ele”.  

Maurice Merleau Ponty

 

Segundo Mircea Eliade , o mythos revela, de um modo mais profundo, o que não é possível à própria experiência racionalista revelar, ou seja, a estrutura da divindade, que se situa acima dos atributos e reúne todos os contrários. Mito é, pois, a narrativa de uma criação: conta-nos de que modo algo que não era começou a ser.

O mitólogo Joseph Campbell afirma que aquilo que os seres humanos têm em comum se revela nos mitos, e completa: 

“Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos. Todos nós precisamos contar nossa história, compreender nossa história. Todos nós precisamos compreender a morte e enfrentar a morte, e todos nós precisamos de ajuda em nossa passagem do nascimento à vida e depois à morte. Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno, compreender o misterioso, descobrir o que somos”. 

Por ocupar este território de recuperação de acontecimentos reais ou imaginários, de celebração do pensamento abstrato e re-instauração do homem primordial, do tempo ritual, os mitos sempre estiveram presentes no processo artístico, evidenciados que estão, na arte das culturas tradicionais, nas tragédias gregas, nos rituais étnicos e, mais recentemente, na cena teatral oriunda de práticas dionisíacas, nas investidas da avant-garde e no movimento de contracultura.

Nas culturas tradicionais e rituais étnicos, a necessidade premente da sacral comunicação entre os participantes da comunidade e desta com as divindades, conduz a uma ordenação de signos em torno de seus mitos, conferindo significado às pinturas, pedras esculpidas e revestindo os seus ritos de um caráter, indubitavelmente, cênico, mágico e encantatório.

Segundo Renato Cohen , o teatro da crueldade de Artaud, a dança-metafísica do balé de Java, os movimentos expressionistas de Mary Wigman, Laban e Dalcroze, que visavam a evocar potências além do ordinário e transportar máscaras “dos deuses”, também adentravam no mesmo território de ordenação de signos em torno de mitos, materializando-se pelo potencial da imagem enquanto conduto da experiência.

Os movimentos de vanguarda e a contracultura direcionaram-se, concomitantemente, a este campo do mito, no sentido da retomada do caráter sagrado das Artes, trespassando o limiar arte/vida, ficcional/real. 

Percebe-se, por intermédio destas relações, que, no diálogo com o mito, a arte galga o patamar de metáfora do mundo, uma forma de re-presentação simbólica que consiste em aprofundar significados da realidade, invertendo seus mecanismos, imitando o que este possui de mais verdadeiro e imutável.

O Cavalo Marinho, ou o Bumba-meu-boi pernambucano, e a Arte da performance, por serem herdeiros diretos da cultura tradicional de um povo e das investidas da avant-garde, respectivamente, atuam num campo aberto à busca desta dita sacralidade e dos mitos de preenchimento. Regem-se pela ludicidade e relação arquetípica com a cena, pelo jogo espontâneo e pela festa de comunhão com o espectador.

O estado festivo e ritualístico encontrado nas brincadeiras do povo e os estados exacerbados de presença nos híbridos experimentos na linguagem da performance, calcados em mitologias pessoais e na composição de personas auto-referentes, revelam as operações no território do mythos, que se distingue do topos do ordinário cotidiano, como reflete Renato Cohen. 

Foi na busca da recuperação do território do mythos no trabalho de atuação cênica, por intermédio da fundamentação nestas duas matrizes de linguagem, o Cavalo Marinho e a Performance, que trafeguei em minha investigação de mestrado na UNICAMP (2005) e que migrei da pesquisa acadêmica para a vivência com os participantes do Núcleo de Experimentação Corporal da ELT, coordenado pela Profa. Juliana Monteiro.

O encontro com o Núcleo, no dia 9 de setembro de 2005, estruturou-se em dois movimentos, o movimento vivencial, onde, por meio da conjunção de breves experimentos de técnicas, busquei ativar trajetórias apoiadas no percurso pessoal dos participantes, formado por traços de memórias individuais e experiências coletivas, e o movimento de reflexões, no qual se discutiu a prática, explanando, paralelamente, a historiografia da linguagem da performance, seu discurso de mise-en-scène e sua intersecção com as manifestações do povo.

O movimento vivencial foi estabelecido em três vias de operação: a via da preparação, a via mítica e a via logocêntrica.  Na via da preparação, como redunda o nome, os corpos dos participantes foram preparados para a vivência no laboratório, por intermédio de técnicas de meditação e ativação de pontos vitais. Na via mítica foram captadas imagens internas, situações arquetípicas e conjunções não-cotidianas destes participantes durante a vivência. Na via logocêntrica foi estruturado todo este cabedal de imagens, situações e conjunções para uma leitura externa, a partir da configuração de uma curta cena.

No movimento das reflexões, a Arte da performance foi discutida enquanto caleidoscópio de linguagens, onde prevalece o discurso visual (Paisagem cênica: Sonora e Imagética), além de também ser explanado o corpo pessoal do performer. 

Na permuta de minha pesquisa com o Núcleo de experimentação corporal da ELT, pude estreitar o contato com minha própria metodologia ou, como denomino, mitodologia e, creio, contribuir para a compreensão do mito enquanto precioso condutor de um corpo-re-ligado aos impulsos e trajetórias pessoais, corpo-gerador de uma cena / rito universal.

           

 

 

 

 

 

 

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