Textos

Olhares críticos - Janeiro de Grandes Espetáculos (PE)Luciana Lyra (Debatedora)

20 º Janeiro de grandes espetáculos

I Análise de peças adultas

Por Luciana Lyra

 

AVESSO

Direção: Igor Lopes

 

Certa feita assistindo a uma entrevista com grande crítica teatral brasileira, ouvi um depoimento mais ou menos assim: ‘Todo crítico ou aquele que olha, avalia a obra de arte com olhos de especialista, é antes de tudo um mero espectador e, antes de tecer comentários mais específicos, é ou não afetado pela obra, ou seja, vê remexidos seus afetos, cavadas suas pessoalidades. Quando assisti ao espetáculo AVESSO, direção de   Igor  Lopes, fui afetada primeiro como simples espectadora, fui instada a voltar no tempo, quando enveredava por experimentos tantos no chamado ‘teatrinho do CAC’, como era chamado o Teatro Milton Bacarelli, no Centro de Artes da UFPE, onde estudei. AVESSO é um espetáculo de natureza experimental, como os que fazia na época da universidade, entendendo a experiência como aquela que por si inclui o risco, o perigo ante a uma zona pouco confortável, nova. O mérito do espetáculo é exatamente incitar a ideia deste ‘perigoso’, deste novo, mas sua sombra é justamente COMO este novo se manifesta, aí moram suas maiores questões e problemáticas. Há em AVESSO um desejo do surreal, do absurdo, um texto, uma ideia. Na forma porém, na encenação limpa e cheias de signos, que não se aprofundam, reside a dificuldade de manifestar este desejo, esta ideia. Existe em AVESSO uma fixação pelo simétrico e limpo de cenário e figurinos, dois textos que não criam simbiose entre si, partituras corporais e vocais que distanciam o ator do si mesmo, adereços que se diluem na ação, que acabam por fomentar uma incongruência entre a ideia e a forma. Como arte é força e forma, desejo e manifestação, penso que será importante que a jovem Cia.,  procure buscar estudar este COMO MANIFESTAR, talvez conversando com a linguagem da performance, por exemplo, entendendo a prática de uma instalação proposta no hall do teatro, no sentido de levantar os porquês desta montagem, o porquê falar sobre isso neste tempo, porquês que devem vir para além e subliminarmente à montagem de algo novo e contemporâneo, mas que incite e revele o perigo a um só passo. Aposto que esta Cia tem muito a oferecer ao cenário teatral de Recife, por que busca com humildade ousar, mas deve procurar se imbuir de técnicas mais profundas que habilitem o ator e o diretor a lidar com searas complexas como as que tiveram contato, aprofundando conceitos na prática do teatro, não só intelectivamente. Eu como espectadora afetada desejo que possam exercitar o avesso de vocês mesmos na cena, pensando que o avesso é a um só tempo o que se revela também, veneno que mata os clichês utilizando-se deles, veneno pra tomar em doses homeopáticas para que não se morra antes da consumação íntegra da obra.

 

ANJO NEGRO

Direção: Samuel Santos

Gostaria de começar minha fala sobre o que vivi na última quarta-feira, com uma frase de Nelson, dita pela personagem Ismael em fins do texto ‘Anjo Negro’: TODOS OS GRITOS SE PARECEM. Utilizo-me de um dito de Nelson para me aproximar de seu pensamento, de sua dramaturgia convulsiva, e para compreender o caminho tomado pela direção do espetáculo em questão. Quando entramos na seara do grito, tudo se desfoca, deforma-se. No entanto, quando falamos em teatro, em arte, como dito, estamos falando de força e forma, de pulsão e manifestação. A encenação vista do texto mítico rodrigueano é da ordem da pulsão, ainda está no âmbito do caos e por isso, ao meu ver, tantos caminhos apontados e não trilhados. Sabemos que uma estreia sempre existe uma tensão, algo como o nascimento, mas quando o nascimento é precoce precisa-se encubar, cuidar da respiração e sinto que talvez depois desta participação no festival, a Cia. devesse procurar o sentido de encenar Nelson Rodrigues, e este texto tão cheio de significados para vocês, em sua maioria atores negros, não? Sinto que precisamos de guias quando montamos um cavalo brabo como ‘Anjo Negro’ e talvez a cegueira tenha sido coletiva para que pudessem criar um caminho único em grupo. Desde as folhas no chão, aos apontamentos dos orixás em falas, gestos e canções, o tom grotesco e animalesco das figuras, até a trilha executada ao vivo, tudo parecia evidenciar um claudicante improviso, uma miscelânia conceitual, que acabou por confundir o espectador. Afinal onde queriam chegar? Onde estão os muros que circundam a casa de Ismael? Por que daqueles figurinos e proposta de cenografia? Terreiro? Dissolução da frontalidade? Por que um corredor? Por que trazer-nos para tão próximo de vocês quando não nos convidavam para entrar ou mesmo espiar pela brecha da fechadura como o Nelson vouyer? Por que não desenvolver os tantos signos postos aos nossos sentidos? Cajados, rostos velados, trono, cortinas, entradas, perfume, guardachuvas? Tantas trilhas e pouca experiência de caminho. Sinto que perderam a dimensão do texto e tocaram este instrumento num mesmo diapasão, do começo até o fim o mesmo tom dos atores, que nos fez perder a sutiliza, a  tragicidade e a comicidade da dramaturgia. Sempre o grito, sempre o grito e num mesmo tom, fazendo-nos acreditar que era uma mesma massa sonora sem forma, sem harmonia. Acredito, como Nelson, que os gritos se parecem sim, se parecem, mas não são os mesmos, não são espelhos uns dos outros, podemos criar texturas várias para que realmente possamos fomentar o estado mais importante da arte do teatro: o encontro. O encontro na última quarta-feira foi confuso, é preciso a humildade  e a tranquilidade de repensar.

ALICE UNDERGROUND

Direção: Antônio Rodrigues

Quando comecei a estudar artes cênicas, tomei contato com uma pesquisa feita pelo Prof. Marco Camarotti acerca do teatro para crianças e neste bojo, a investigação dos contos infantis. Fazendo um curso com este inesquecível mestre, percebi a profundidade com que deveríamos tratar os contos ditos para crianças, entendendo o quanto eles dizem sobre nossa vida madura, sobre nós mesmos e nossa jornada psíquica enquanto indivíduos sociais.  Faço este preâmbulo todo, por que ao ver ALICE UNDERGROUND,  senti o quanto neste espetáculo, a dimensão profunda do conto foi relegada em nome da superfície da festa. Em tempos de BBB, a forma se apresenta, os corpos se apresentam, o riso fácil é solicitado, sem desvelar as camadas que se escondem em diálogos aparentemente desconexos e ‘viajados’. Esse excesso de forma, deixou-me um tanto desconfortável e curiosa, como Alice. Por que optar por esse caminho de tratamento do conto? Por que a transposição literal da história na dramaturgia, revelando diálogos e mesmos personagens do conto?  Houve pesquisa destes contos: Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho? Que tipo de pesquisa? Bem, o tom infantil que traz a peça me sugere um lugar confortável e já conhecido que encontrou a Cia para manifestar seu desejo de mexer com esse material, mostra-nos uma Alice menina e bobinha diante dos perigos do novo mundo, cheio de sonoridades estranhas, baseados, sexo e rock in roll. Pensando que a abordagem da Cênicas Cia. de Repertório, idealiza muito mais um lugar jovem e não infantil de Alice, que sejam bem vindos os conflitos reais dos jovens, mostrando a profundidade destes conflitos: as drogas, a sexualidade, a relação com  autoridade, isso realmente não se aprofunda nesse trabalho e a encenação não ajuda a estes caminhos se estabelecerem, inspirando-se, mesmo que inconscientemente, em ícones de nosso teatro pernambucano, como Cinderela, que é em si experiência de outra natureza. Em contrapartida, o que me encantou na montagem foram as cenas bem ensaiadas, e, principalmente, a juventude, a garra de talentosos atores, mesmo que cheios de pequenos vícios de interpretação já arrematados em suas jornadas teatrais. Foram estes atores que fizeram do espetáculo um circo de variedades que comunga com a platéia, entendendo o circo como um ambiente de risco e cumplicidade e circularidade das energias. Apesar destes apontamentos iniciais, é preciso dizer que saí do teatro afetada pelo envolvimento do público com o trabalho, indício que ali se estabeleceu realmente um diálogo, apesar das arestas conceituais e formais mostradas na cena. Espero que com estas palavras, o grupo possa repensar em como potencializar uma ideia interessante, com material humano interessante, como podemos ir além, buscando fontes de estudos para dar densidade à cena de algo que por si já é profundo como é o conto de Alice, mantendo o non sense, o travestismo, o submundo, de repente assistindo aos filmes Cisne Negro, Labirinto do Fauno, ou mesmo os Grimm, peça singular que compõe a programação deste festival. Alice por si já é underground, não há necessidade de sublinhar com formas e personas sobrepostas, procurem estas camadas do conto, mais do que buscar gags para sustentar algo que já sustenta.  

SENHORA DE ENGENHO

Direção: Emmanuel David d’Lucard

Li o texto ‘Senhora de Engenho’, de Miriam Halfim, em 2009, quando estava na preparação do espetáculo ‘Memória da cana’, inspirado no ‘Álbum de família’ de Nelson, com direção de Newton Moreno, por que lá fazia Dona Senhorinha, uma senhora de engenho como Branca Dias. Havia conhecido também a fantasma Branca Dias, que habita os escritos de Gilberto Freyre em ‘Assombrações do Recife Velho’. Branca virou para mim uma grande heroína, e por tal, matéria de estudos e salvação. A Branca que passei a estudar era aquela sempre emblemática e cheias de camadas, funções e feitos. No texto de Halfim, Branca surge exatamente como a figura forte, mas cheia de elipses, tomada de idas e vindas emocionais ante à terra prometida, Pernambuco. Uma Branca real e histórica, mas humanizada. É justamente deste ponto, a humanização, que gostaria de tecer algumas palavras sobre a peça ‘Senhora de Engenho’, da Cia. Popular de Teatro de Camaragibe. O espetáculo visto na última sexta apresentou-nos uma grande correção em termos formais, restaurando um ambiente do engenho com seus pesados móveis, sua pouca luz e o grande pai a reger uma orquestra de filhos, vestidos e alimentados como na colônia. Um realismo histórico do texto seguido com rigor pela encenação. A mão presente da direção fez-nos ver sim marcas e textos ditos com certo domínio, mesmo que a trilha sonora criada em cima de Loreena McKennitt  e Enya, tirasse-nos do engenho, levando-nos, muitas vezes, a sessões de meditação ( realmente a trilha é algo a se repensar, haja visto o repertório hebraico tão rico, quanto acessível). No entanto, não é o excesso de formalismo da encenação que me salta aos olhos neste trabalho, mas a maneira como a Cia. emplacou a mesma encenação, com o pouco sentido de humanização dos atores na relação com seus personagens. Ao ver à peça, senti que além do domínio das marcas e do texto, seria interessante que houvesse mais propriedade dos atores na lida com esta matéria. Quando falo em propriedade, falo em autoria, falo em algo que se toma como próprio. Se Branca é uma figura que trafegou em terras de Camaragibe, ela diz da terra de vocês atores e por isso talvez tenham querido se aproximar dela, de Diogo Fernandes, de Briolanja, de Brites, de Bento, por que são figuras que tornaram o solo de vocês civilização. Se estas personagens nos revelam algo de nossa origem, de nós mesmos, elas somos nós, entendem? Então, como deixá-las menos esteriotipadas, mas suscetíveis às ondas de afetos como nós, mais humanas e menos históricas. Por que não nos mostrar as diversas camadas de cada uma. Será que Branca sempre se mantém em postura altiva do começo ao fim da peça, por que é uma mulher forte ou Diogo está sempre em angústia por sua bigamia. Será que não podemos dar tempos e criar atmosferas que possam nos favorecer entrar no mar desta história e não da história dos livros? Sinto que para se criar um espetáculo, mais do que coerência, correção, a luz de Apolo, precisamos adentrar o dionisíaco, deixar os índios caetés entrarem na casa grande mesmo, não índios frágeis cheios de identidades, mas índios selvagens sem rostos. Desta perspectiva, subir na mesa realmente faz sentido, por que ousa arrematar a nós mesmos como atores, e como processo simbiótico de comunhão, o espectador. Importante que encenador e atores saíam de um didatismo histórico, transcendam mesmo numa ideia realista, ao meu ver. Mesmo com todas estas questões de PROPRIEDADE, sinto que a humildade no processo de aprendizagem que passa este grupo, o desejo de acertar e fazer um bom teatro estreita meus laços com a Cia. Popular de Camaragibe, faz-me entender que teatro é um processo pedagógico, como este que estamos vivendo agora, e que podemos aprender a construir boas marcas, dizer um texto teatral, como podemos desconstruir estes caminhos criando margens e ruídos dionisíacos, que nos tomem e nos tirem das cadeiras para o aplauso aos deuses, nos façam entender que fazer arte é um caminho para o si mesmo e para o outro.

 
20 º Janeiro de grandes espetáculos
II Análise de peças adultas
Por Luciana Lyra
 
NA SOLIDÃO DOS CAMPOS DE ALGODÃO
Direção: Antônio Guedes
 
Outro dia, lendo um ensaio sobre o autor do texto ‘Na solidão dos campos de algodão’, registrei uma frase de sua autoria: ‘Cada vez mais me afasto de qualquer realismo. Dou-me conta de como as formas que remetem para a tragédia clássica me são indispensáveis’, a tragédia, aquela que se multifaceta, segundo Nietzsche, entre força e forma, entre os opostos complementares: apolíneo e dionisíaco, os quais habitam cada ser. Pois bem, creio que é do lugar da tragédia desejada pelo dramaturgo que quero começar por tecer palavras sobre o espetáculo da Cia. do Ator Nu, apresentado na última quarta-feira no Festival janeiro de grandes espetáculos. 
 
Havia assistido ‘Na Solidão dos campos de algodão’ em 2012, quando de sua pré-estreia no Teatro Marco Camarotti. Naquele tempo, os atores Tay Lopez e Edjalma Freitas tateavam ainda mais a palavra, confrontando-se com a linguagem do texto e da bem acabada encenação formalista de Antônio Guedes, o que, a meu ver, dificultou o desvelamento da tragédia do indivíduo e mesmo o acontecimento do teatro, que é em si, o encontro com o outro, o encontro entre ator e platéia. Em linhas gerais, não fui tão afetada pela construção cênica de então. 
 
Nesta apresentação para o festival, sinto que houve uma maior apropriação por parte dos atores acerca da textualidade, incluindo aí, o texto falado e a formalização da cena, as palavras moveram-se em paisagens mais sentidas no espectador. Muitas vezes, fechei os olhos para escutar a maestria do pensamento do dramaturgo por meio da compreensão dos atores, e, naturalmente, do encenador. Por vezes, durante a apresentação, pensei: Esta é uma peça para se escutar e menos olhar.
 
No entanto, mesmo com o crescimento do trabalho, a maior apropriação dos talentosos atores na construção e propriedade de suas partituras físicas e vocais, gerando maior comunicação, penso que é a carência de aproximação deste trágico do indivíduo que ainda persiste, indicando que ali reside ainda a questão mais frágil do espetáculo. Sim, o texto de koltès nos propõe uma dimensão de tragicidade, apresentando um mundo de repetição, estaticidade e apatia perante o destino, que não permite o vislumbre da transcendência, contudo sinto que a revelação inteira desta apatia deve-se justamente ao seu contraponto: a tensão. 
 
No espetáculo, o estado de tensão entre estes opostos ainda é forjado mais em representação e menos na experiência destes atores. A evidência do risco, da linha tênue entre o bicho, o curvo, o cavalo, o vento em altas temperaturas, as trevas, o desvio, o MERCADOR, em oposição ao homem, a lei, a baixas temperaturas, a luz elétrica, o COMPRADOR, não se estabelece ao ponto de trazer à tona justamente o contrário da tensão: a apatia frente à fatalidade da existência. O distanciamento com que são criadas as ações acabam por não favorecer que possamos ver sombras no campo de algodão. Vemos o campo branco, claro e ascéptico, mas não vemos a solidão cavernosa à espreita, a dúvida em aceitar o casaco do vendedor, o casaco que pode transformar a hora do crepúsculo  em noite, hora do esquecimento.
 
Na figura do Mercador (Tay Lopez), vemos vislumbres mais densos desta tensão, mas o comprador (Edjalma Freitas), que poderia se abater pela dúvida em dado momento, favorecendo a mescla ou mesmo a fusão das duas figuras em uma somente, não se estabelece, permanecendo toda a ação num mesmo diapasão e conflito: o mercador quer vender, desvelar o desejo, o comprador, apesar de perceber o desvio onde se meteu, quer continuar na linha reta. Se cada um se mantém em seu pólo, onde mora então a dúvida que mistura palavras, sons e imagens num cérebro-vídeo que se transfigura no palco? 
 
Percebo que na encenação, prevalece o branco, ele é vencedor e nós da platéia, assistimos à esta vitória sobre o selvagem, sobre o delírio e o desejo. Pergunto: Será que não podemos transformar este retângulo limpo e claro em ringue, como no filme Clube da Luta, onde vemos força e forma a digladiarem-se? Será que não podemos acabar o espetáculo com a sensação de que a vitória é precisamente a própria luta? Que não existe o paraíso, branco e limpo, um nirvana onde chegaremos, mas que o nivarna é o caminho, feito de desvios sempre, de acasos? 
 
Enfim, são questões para se refletir e que tenho certeza que serão acolhidas por um grupo, onde a tônica é o sentido da investigação e o foco é a ótima qualidade das bem cuidadas produções que nos são sempre apresentadas. Que possamos nos deslocar entre céu e terra, como Hermes, o comerciante. Fazer o câmbio, a transação das dimensões para descortinar a perplexidade do ser frente à movência da vida. Como o sexo se desloca, não é fixo, vamos fazer o movimento de um para outro e de outro para um, em elipses que se integram.
 
 
 
CAMILLE CLAUDEL
Direção, dramaturgia e atuação: Ceronha Pontes
 
Carta a uma ‘cadela ainda sem tetas’
 
Querida Mm. Pontes,
 
No último verão europeu estive em Paris sentindo o calor a penetrar ideias tantas. Em caminhadas cheias de suor e deslumbramento, deparei-me com o casarão preservado, charmoso e imponente na Rua Varenne, o antigo Hôtel Biron, que hoje sedia o Museu Rodin, com um acervo imenso e publicamente reconhecido de 300 obras. No seu interior, esculturas, jardins,  restaurante e uma pequena sala dedicada à Camille Claudel, dita, ‘aprendiz’ e ‘amante’ do grande escultor. 
 
Depois de vagar pelo museu e tomada por torções e expressões de corpos de pedra antes posados em carne para os artistas, saí novamente às ruas em pensamentos acerca da diferença: Por que um museu inteiro é construído em torno de um ‘falo’, e apenas uma recôndita sala traz à tona poucos trabalhos de uma artista ‘envaginada’? Por que continuamos a desvelar privilégios de uma sociedade patriarcal, calando vozes femininas por séculos? 
 
E os questionamentos insistiam em mim: mulher, artista, pensadora... Assim, fazendo perguntas, desci escadas e como pílula para angústia, tomei o metrô, fui aos subterrâneos da cidade luz, que obscurece muitas de suas mulheres. Chegando num ponto em Montparnasse Bienvenüe, subi escadas outras e surpresa, deparei-me com uma pequena praça, quase sem vida, uma ‘praça-passagem’ de transeuntes e vendedores de cerejas. Seu nome: Camille Claudel. Poderia ser motivo de regozijo ver uma praça com seu nome numa rua de Paris, mas como não lembrar de todo um museu dedicado ao seu ‘mestre’? Parecia realmente um prêmio de consolação o nome estampado em pequena praça pública, consolação para aquela que morreu na loucura e no esquecimento. A mesma canonização que sofreu Joana d’Arc, hoje padroeira da França, após anos na fogueira armada por seus próprios conterrâneos. 
 
É deste lugar, o da indignação com a diferença, que quero começar a falar a respeito do espetáculo Camille Claudel, de sua autoria, Mm. Ceronha Pontes...
 
Na última quarta-feira, cheguei ao Teatro Arraial, em Recife, às 20:50h, recebendo, de pronto, a responsabilidade inferida pela produção de seu espetáculo em interferir na sua cena quando solicitada a te oferecer cigarros. Não fumo, mas o jogo me pareceu um jeito de chegar junto de sua ação, de me friccionar ao seu mundo, um mundo também de Camille. Dentro do teatro intimista, fui invadida por uma música e uma gravação, que não condiziam com as sombras dos móveis claros, da escada branca e da forte silhueta ao fundo. A música e a gravação ‘historicizada’ não acolhiam como mãe, como barro, mas desde já dominavam como violentos falos. A música escolhida e a gravação não me pareceram bons recursos para iniciar um trabalho daquela natureza. No entanto, concentrei-me na silhueta em movimento e foi assim que comecei a ser instada no universo de sua Camille. Um movimento sinuoso e feminino quebrando-se na penumbra do ar. 
 
No espetáculo, com bons cenário e figurino, uma iluminação dialógica e conduzido pela engenhosa atriz que é, somos convidados a imaginar Villeneuve, onde Camille fez-se menina, somos apresentados a Paul Claudel, seu irmão mais novo e ao seu mestre e amor Auguste Rodin. Somos especialmente tocados com a pulsão desta mulher pelo ato e pela arte de esculpir, pela busca de sua autonomia, na tentativa de romper com as diferenças e os privilégios da sociedade francesa falocêntrica. 
 
O espetáculo nos dá pistas da vida da artista, por meio da loucura, da paranóia, do estado de solidão, de abandono e ingratidão desvelados no palco. Lá, vemos uma Camille potente, mas em desespero, estranha e obsessiva, querendo a morte de Rodin. Uma Camille que passa a delirar sobre seu passado, sobre a sua mãe a impedindo de ser uma artista e sobre as lembranças ruins decorrentes da ausência de reconhecimento a sufocar. 
 
Não há dúvidas, que a cena de Camille Claudel é meritória. E o maior valor é justamente dar voz ao abandono e à diferença. Sua Camille Claudel, Mm. Pontes,  faz-nos ver, em praça pública, a mulher que de gênio, transformou-se em paranóica, esquizofrênica, louca, abatendo-se física e psicologicamente. Vemos a Camille que não mais se alimenta e desconfia de todas as pessoas, achando que todos a matarão, e a culminância de sua internação em manicômio a sublinhar a discriminação. A contundência e a grandiosidade do talento de Camille estavam sim, entre a figura legendária de Rodin e a de seu irmão, que se tornou um dos maiores expoentes da literatura de sua geração. À ela, o lugar menor, a loucura e o esquecimento, que a sua cena traz à representação.
 
No entanto, apesar do grande mérito de retrospecção da genial artista, pela competência de uma atriz e de seus pares, o espetáculo encontra sua fragilidade, a meu ver, exatamente na fundamental relação entre atriz e personagem. Percebo que Camille Claudel, o espetáculo, poderá encontrar mais potência, se desvelar não só as suas habilidades de representação da escultora, Mm. Pontes, mas as suas camadas pessoais e primevas que impulsionam a sua identificação com a dita personagem. Pode haver uma poderosa convulsão, quando a personagem Camille tornar-se persona de Ceronha, tornar-se uma máscara ritual de você mesma, o que ainda não acontece. 
 
Em Camille Claudel, a personagem ainda se revela num estado e num tom de representação e não de experiência de estados, o que se faz sentir num registro didático e histórico que, por vezes, adentra à atuação e também à dramaturgia. Apesar de sua mãe ser motivo de dedicação de sua cena, fato que poderia vazar enquanto potência e impulso do seu eu artista, prevalece o teor representativo da cena. Penso que a dissolução do espaço à italiana, tão expositivo das formas, pode ser salutar numa revisão de seu espetáculo, Mm. Pontes, compartilhando mais de frente com o espectador, tomado como cúmplice presente do abandono. Talvez a música e o canto próprios possam também revelar o gênio criativo de uma atriz sob à máscara, mais do que uma gravação datando fatos ou uma música de época definida. 
 
Sim, quando cheguei ao Teatro Arraial e fui convocada a te oferecer cigarros, quis ver uma relação umbilical de uma atriz com sua personagem, mas isso ainda não se estabeleceu. O que vejo ainda é o ‘disfarce’, a ‘cadela sem tetas’ da escultura, uma boa atriz sob uma máscara da ficção. Sim, como atriz que também sou, sinto que já freqüentei o ‘inferno’ e falo deste lugar para você. Se o Deus, macho que é, voou! Fumemos juntas à revolução das deusas. Revolução esta que pode começar na fri(c)ção entre atriz e personagem, não na representação ficcional desta, mas na construção de uma persona. Talvez seja a hora de abdicar da máscara de ‘atriz’, para assumir as tetas de uma ‘pessoa’, uma perfomer na leitura da alteridade, um jogo de espelhamento onde não se sabe em que lugar começa a atriz e a personagem termina. Que Camille encarne sua Fortaleza e sua Fortaleza seja a carne de Camille. Assim pode tecer uma renda mais firme, uma trança que liga a genial escultora francesa à talentosa atriz cearense, acolhida pelas terras pernambucanas. Penso que na força desta trama, reafirmamos que nós mulheres não somos habitantes dos museus, gritamos nuas nas grandes praças públicas, vagamos em florestas sujas do barro primeiro, somos cadelas selvagens com tetas expostas e orgulhosas de nossa arte. Por fim, assumimos todas as artes de ser mulher.
 
Com imenso carinho e 
reconhecimento sincero de sua ousadia, 
Mm. Lyra.
 
MARIANO, IRMÃO MEU
Direção: Eron Villar
 
A insanidade sempre nos faz adentrar numa zona de riscos e oscilações. A loucura é o mar, como Deus é o mar, inconstantes. É sobre o mar que quero falar, o mar que me traz sempre de volta ao Recife. É o mar que vou trazer como imagem, como metáfora para pensar sobre a peça ‘Mariano, irmão meu’, direção de Eron Villar, com a Cia. Engenho de Teatro. O mar, personagem tão presente no imaginário desta peça. Pois bem, quinta feira última, ao chegar  no Teatro Hermilo Borba Filho e me deparar com o universo cênico simbólico criado pela Cia., fui levada ao cais. Portas que se movem com maestria e se transformam em tantos outros signos, um alegórico carrossel domando cavalos a girar, tapetes que delimitam a soleira da casa, da cena e do sonho, um som embalando as ondas, figuras que nos aparecem em trajes cheios de texturas e símbolos, carregando malas, sentando em gavetas, em móveis, uma luz correta indicando a passagem do tempo, uma direção suave e segura para uma história delicada prestes a se revelar pelo teatro. Tudo seria absolutamente envolvente, à minha visão, se não houvesse uma grave divergência de registro, de tom e ritmo no espetáculo, que trafega entre o realismo e o simbólico, num trânsito confuso até. E talvez por isso eu tenha permanecido no cais, esperando sempre que a onda me atingisse, que pudesse pular e ser engolida e levada numa viagem, como Mariano tanto quis. Na minha percepção, a peça, assim como eu, fica no cais, vendo a loucura de longe, infantilizando-a, observando-a sem, no entanto, adentrá-la, vivenciá-la. Desde os diálogos em tom realista e destituídos de variações e intenções, passando pelos símbolos apontados e não desenvolvidos como signos, a exemplo das cartas e dos balões, até mesmo o texto dito muitas vezes com insegurança, falta de apropriação e mudanças de humores e tempo, tudo nos encaminha para um ritmo constante, monótono do começo ao fim do espetáculo, que não nos dá pista da passagem do tempo, da mudança de lugares, das atmosferas e do aumento da tensão entre Damião, Mariano e sua tia. Nada nos traz o mar na sua intensidade, nada nos traz a loucura ou Deus. A internação de Mariano, a angústia real de Damião, o pragmatismo da tia e a morte, que deveriam estar sempre à espreita gerando a oposição com o afeto entre os irmãos, a magia da viagem, da imagem forte da mãe que se foi, são apenas falados, são textos ainda sem encarnação. Sabe, ao ver ‘Mariano, irmão meu’, fui instada a lembrar de películas relativamente recentes, como ‘A vida é bela’ e até ‘Labirinto do fauno’, onde a realidade está sempre em confronto com o mágico, suavizando o horror da ‘vida como ela é’, a vida que separa mentes sãs das mentes loucas, cerceando o sentido da liberdade de agir e pensar. Pensei o quanto estes filmes revelam tudo isso com a própria linguagem, sem tornar infantil o simbólico, sem carecer do texto para explicar, ‘Mariano’ ainda explica tanto, racionaliza, é formal sem transcender desta formalidade. O mar que me encantou como sereia no início da peça, no som de um instrumento, ficou longe, e o formalismo, a representação, os esteriótipos, o realismo, venceu a magia, o que a meu ver, pode ser repensado no decorrer do maior amadurecimento do espetáculo. Não vimos o cavalo desgovernar-se, romper o carrossel e cavalgar como corcel livre. Não escutamos a respiração que oscila sempre no estado de loucura. Escutar o mar, banhar-se com o impacto de suas ondas, talvez seja o caminho para repensar o ritmo e a força do espetáculo. Assim como ouviram a natureza de Guimarães Rosa anos atrás, sinto que é hora de escutar ondas, banhar-se no mar, deixar-se invadir pela salgada e divina loucura, que nos transporta e nos transforma.
 
 
H(EU)STÓRIA – O TEMPO EM TRANSE
Direção: Júnior Aguiar
 
Povos pagãos antigos reverenciavam seus deuses dedicando a sexta-feira ao astro Vênus, na mitologia grega, a deusa Afrodite. Sexta-feira é dia de festa, de prazer e de vestir branco para os adeptos da macumba. Foi na última sexta-feira que partilhei da cena de H(eu)stória, direção de Júnior Aguiar. Uma peça-documentário que instaura um campo ‘doméstico’, ‘informal’ de ação, fazendo-me sentir em casa e num só tempo, num teatro que se constrói sobre os escombros e os ecos do nosso gênio Glauber Rocha. 
Ao compartilhar desta cena-manifesto, tomo contato com o que chamo agora de ‘teatro só que ao contrário’, um teatro infeccionado, palanque de angústias e desejos de dois performers sob à máscara multiface do cineasta bahiano, morto na década de 80. Desde o encontro regado a chai na entrada do teatro, aos incensos e o altar-oferenda, com santos e protetores, fogo, água, ao branco vestido pelos atuantes, tudo nos desvela o universo apocalíptico, caótico e profético do personagem central do trabalho, descortinando-o documento a documento.
Não penso que deva analisar H(EU)STÓRIA do ponto de vista formal do teatro, do teatro enquanto linguagem, mas ali vi o teatro como ágora, como arena para discursos sociais, que são num mesmo passo, o discurso do eu, do indivíduo nas suas tragédias pessoais, bem aos moldes de Glauber.
Apesar das múltiplas referências para criação, da História como personagem e tema, do grito muitas vezes histérico e excessivo da proposta, ou da lentidão dos fatos, o trabalho tem verdades desconcertantes. Um campo em transe que vaza do palco para a platéia. O Coletivo grão comum e gota serena produções e eventos afeta com o discurso, com a revelação desta importante personagem nacional e também com a competência dos atuantes, em especial de Aguiar, propositor do trabalho. 
No entanto, penso que para o desdobramento mais efetivo deste discurso, pode-se haver maior reflexão da linguagem do teatro, neste ponto a proposta deixa a desejar. Penso que uma imersão nas possibilidades que oferece a arte contemporânea, como a performance, por exemplo, que é uma arte de legitimidade deste EU do artista, poderá ser de grande valia para  o amadurecimento estético da proposta, no sentido de desvelar um campo potente de mise-en-scène. 
O que se vê ali são ideias muito fortes, pulsões à flor da pele, mostrando-nos o Glauber distante e próximo em energias, mas carece de encontrar um caminho mais conciso e sintético de expressão, que pode revelar ainda mais este indivíduo, este EU dentro da grande História, sem que esta se sobreponha, fálica que é. Que a História entre na corrente do indivíduo como um fluxo em constância. No mais, é a força que se distribui generosamente a partir destes dois artistas narcísicos, como Glauber, no que o Narciso tem de melhor para nos dar, o olhar sobre si mesmo no lago profundo e o reflexo do mundo a adentrar n’água e em nós. Que sejam sempre festa estes olhares sobre nós mesmos e sobre o mundo. Que venham novas sextas-feiras de teatro, só que ao contrário!!!!
 
AS CONFRARIAS
Direção: Antônio Cadengue
 
Dez anos passados de minha migração para São Paulo e do meu distanciamento no que tange à produção da Cia. de Teatro de Seraphim, que muito me serviu de referência no sentido de um teatro comprometido com a investigação estética. Em contentamento, vejo a retomada do trabalho deste coletivo, sob a batuta de Antônio Cadengue e força emblemática da nossa homenageada atriz Lúcia Machado. Mais exultante é a retomada do projeto Trilogia Brasileira, com a montagem de ‘As Confrarias’, de Jorge Andrade, tão importante dramaturgo nacional.
 
Na observância da cena de ‘As Confrarias’ fui instada a voltar no tempo de Em nome do desejo; O Alienista; Os Biombos, e outros tantos espetáculos que compõem brilhantemente a história do teatro pernambucano. Como os ditos espetáculos marcantes na década de noventa do século XX, a encenação de ‘As confrarias’, prima por um rigor estético e uma teatralidade bem ao gosto do movimento barroco, a que o texto, de certo modo, vincula-se. A beleza da articulação dos elementos cênicos ressalta as oposições entre bem e mal, e desvela o claro/escuro de uma época, trançada em arraigados preconceitos e montada num discurso absolutamente falocêntrico. 
 
É refinado e cuidadoso o trabalho com as tantas referências que compõe a mise-en-scène, vê-se ali uma encenação comprometida com o texto, vê-se um campo racional de construção. No entanto, percebo que este teor, digamos, intelectivo da obra muitas vezes abafa a intensidade das emoções contidas na trama. Tenho a sensação de que as intensidades dos quadros, das paisagens formadas aos olhos dos espectadores, não acontecem no interior das figuras que os habitam. Em outras palavras, sinto que o elenco mesmo com toda experiência, com o talento, o domínio do texto e entendimento da proposta, carece de propriedade do que se atua, como se ali não se discutissem questões que dizem respeito a eles mesmos, imersos nas questões raciais, sexuais, culturais do mundo atual. Mesmo com inserções de elementos contemporâneos nos figurinos da personagem do filho, sinto que a atualização da obra não ganha o peso que poderia galgar com a apropriação dos atores, o que naturalmente, pode acontecer com amadurecimento do espetáculo.
 
Também é louvável, que a encenação reflita sobre o próprio ato cênico, a partir do mote de Andrade, mas, indago-me: Como atingir estes caminhos de reflexão, se estes questionamentos não vazam nas atuações, mais ficcionadas e menos atritadas com o ‘eu’ destes artistas em cena? Em outras palavras, como discutir a fronteira tênue entre vida e arte, se os atores não se mostram neste processo híbrido e ficcionam personagens? São apenas perguntas que me fiz durante a récita de ontem, e que trago aqui para conversarmos.
 
Outra questão que quero fazer emergir e talvez seja a de maior interesse em discutir é justamente em relação à condução da trama de Andrade, pela personagem Marta, uma mulher. Em minha opinião, a dramaturgia propõe-nos que acompanhemos a saga de um filho pelos olhos maternos. E por que não dar abertura a este feminino, em detrimento ao triunfo do falo? Por que, apesar da forte atuação de Lúcia Machado, tive a sensação que a mãe não venceu no fim da trança cênica, e que a arte não foi maior do que a sociedade masculina que a confrontara? Por que não deixar escorrer o leite, as lágrimas, a terra, as emoções desta mãe, numa jornada da crença à descrença no mundo patriarcal? Estas são mais provocações que resolvi levantar para que possamos refletir sobre um espetáculo, que tem tudo para marcar a trajetória das artes cênicas de Recife e celebrar o retorno de tão profícua Companhia.
 
 
Luciana Lyra
Recife, 27 de fevereiro de 2014.
 

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