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Pontes e pontos de contato: o Cavalo Marinho e a Arte da Performance Luciana Lyra

RESUMO

O artigo aborda duas expressões cênicas, quais sejam: o Bumba-meu-Boi pernambucano (Cavalo Marinho) e a Arte contemporânea da Performance, que, oriundas de diferentes contextos, desvelam-se com seus pontos de contato, suas profundas intersecções.

 

Palavras-chave: Performace Cultural; Cavalo Marinho; Arte da Performance.

 

Cavalo Marinho e Performance Art enquanto performances culturais

“... Artaud não era louco a ponto de acreditar que a manifestação de um temperamento estrangeiro, como as danças balinesas, que desenvolveram lentamente suas tradições a custo de centúrias, poderia ser transplantada, como parte integrante de nossa cultura ocidental (...). Nosso problema é, antes, o de encontrar, para o nosso próprio teatro, os equivalentes daquelas manifestações (PRONKO, L.) 

 

Na sua obra A Antropologia da Performance , Victor Turner relata a experiência do filósofo e antropólogo Milton Singer em viagem ao sul da Índia, na observação de jogos, concertos, conferências, rituais, cerimônias, festivais e rezadores da comunidade. Enfim, um exame minucioso de tudo o que, para nós ocidentais, usualmente, classifica-se sob a égide da religião, tanto como da arte ou da cultura. Percebeu Singer a performance como sendo elemento - constituinte, comum e mesmo fundante - nestas “unidades de observação” da sociedade, que passaram a ser por ele chamadas de performances culturais.

Singer entendeu, concomitantemente, que as performances culturais são compostas pelo o que denomina de “cultural media” – modo de comunicação que inclui não apenas a linguagem falada, mas também os meios não lingüísticos como a música, a dança, a atuação, as artes gráficas e plásticas – combinadas em muitos caminhos para expressar e comunicar o conteúdo da então observada cultura indiana.

Por esta perspectiva, ritual, teatro e outros gêneros performativos são, freqüentemente, orquestrações da media, não expressões de um médium singular. Ele ainda argumenta - expõe Turner - que o estudo de diferentes formas de media no contexto social e cultural pode revelar, para a sociedade indiana, importantes ligações, numa espécie de continuum da cidade ou da comunidade. 

Turner, por sua vez, explicita que além de reflexos e expressões da cultura, as performances culturais são agenciadoras de mudanças. Estas transformações, agenciadas pelas performances culturais, surgem das crises que se mostram detonadas por fendas na estrutura social. 

Desta forma, uma fenda na base de uma sociedade leva a uma crise (estado liminar), que, por sua vez, desemboca numa ação reparadora (performance cultural), levando a um movimento de reintegração ou mesmo a um cisma irreparável deste agrupamento social, constituindo-se em si, a transformação. A ação reparadora pode ser judicial (e racional) ou metafísica (e simbólica), através do ritual .

O pesquisador pernambucano Marco Camarotti  discorre que, no Brasil - cuja história tem sido um extenso campo para o desenvolvimento de dramas sociais, desde a escravidão indígena à negra - intensas ações reparadoras de conflitos foram e são vivenciadas, levando a relevantes contribuições para a formação da cultura brasileira, em sua dimensão subjuntiva.

As formas de teatro praticadas no Nordeste do país, também denominadas de Teatro Folclórico em diferentes culturas, são exemplos destas ações reparadoras, de performances culturais que rompem com a linha convencional da arte, surgindo como manifestação artístico-ritual e re-elaborando suas tradições através dos tempos. Nesse teatro, podemos englobar, especificamente, os espetáculos de Mamulengo, Chegança, Pastoril e Cavalo Marinho (Bumba-meu-boi), os quais possuem uma estrutura dramática definida.

Entretanto, como visto anteriormente, a amplitude do termo performance cultural é notória. Ela é étnica ou intercultural, histórica e não-histórica, estética e ritual, sociológica e política . Podemos concluir enfim, que este conceito aplica-se a uma experiência concreta na cultura, seja nas manifestações populares, como no abordado Teatro do Povo do Nordeste ou até mesmo nas investidas artísticas de vanguarda do século XX, onde está situado, cronologicamente, o surgimento da Arte da Performance.

Da forma como sucedeu com o Teatro do Povo, a Arte da Performance surgiu no lugar de ação reparadora (performance cultural), no seu contínuo movimento de ruptura com o que poderia ser denominado de “arte-estabelecida” no século passado. Visando dessacralizar a Arte, tirando-a de sua mera função estética, a linguagem de soma da performance, originada oficialmente com o advento da modernidade na Europa e nos Estados Unidos , objetivava resgatar a característica ritual da Arte, levando-a, paradoxalmente, a um movimento de reintegração por meio da quebra de convenções.

Renato Cohen, estudioso singular deste gênero no Brasil, expõe que a performance é basicamente uma arte de intervenção, modificadora, que almeja causar uma transformação no receptor, sem que sua essência esteja ligada, de forma direta, à fruição. 

Por todas estas explanações, podemos perceber que tanto o Teatro do Povo do Nordeste como o Arte da Performance, vêm atuando como uma espécie de metacomentário das dificuldades e conflitos da vida e da Arte, funcionando como uma reordenação interpretativa da própria experiência social e artística.

Ambas as vertentes de performance cultural em foco, nas suas especificidades, carregam em si a dimensão da ruptura e da resistência, não perdendo o contato com a espontaneidade e a teatralidade, em detrimento do ensaiado e elaborado, o que se reflete sobremaneira, nos discursos de cena ou encenações dentro destas expressões. 

A pesquisa sobre o complexo da encenação nas Artes Cênicas, especificamente no teatro, é um fenômeno recente. Sobre isso, discorre Jean-Jacques Roubine:

“Aos olhos do historiador a encenação firma-se como arte autônoma – “em pé de igualdade com as outras”, poderíamos dizer – somente numa época recente convencionou-se adotar como ponto de partida o ano de 1887, quando Antoine fundou o Théâtre-Libre. Por diversas razões, outros anos poderiam ser fixados como inaugurais – simbolicamente – de uma nova era do teatro, a da encenação no sentido moderno do termo: 1866, por exemplo, data da criação da companhia dos Meininger; ou 1880, quando a iluminação elétrica é adotada pela maioria das salas européias.” 

 

Confirmado pela assertiva acima, até o movimento de reteatralização, no qual a encenação vem ganhar novo status, o texto configurava-se como grande foco na arte teatral. Diz novamente Roubine:

 

“... O textocentrismo desviou o espetáculo ocidental para o trilho do mimetismo e do ilusionismo. O que significa que as possibilidades específicas do palco e do teatro não foram exploradas, nem sequer experimentadas, senão de modo intermitente. Em vez de emanadas diretamente da sua prática, o encenador teve de sujeitar-se a uma exigência de reprodução, mais ou menos estilizada, de modelos alheios ao teatro. Em outras palavras, o palco ocidental só abriga um teatro sem teatralidade.” 

A partir da gradativa revolução, iniciada em fins do século XIX e começo do século XX, novas experimentações na mise en scène começaram a dar a tônica dos espetáculos, perfazendo pesquisas nos campos da cenografia, iluminação, sonoplastia, indumentária e da atuação.

Uma das mais radicais proposições sobre a encenação está fundamentada sob a ótica de Antonin Artaud. Sua visão da linguagem de encenação tomada, por muitos pesquisadores, mais na sua qualidade de utopia poética , do que como instrumento conceitual para o fomento de um outro tipo de espetáculo, almejava a recuperação do teatro como meio de comoção catártica do espectador.

Independentemente da posição tomada em relação aos manifestos de Artaud, não se pode deixar de reverenciar sua defesa no tocante à implementação de obras cênicas que não estivessem isoladas, mas dependentes de algo pulsante que as fundamentasse: a ritualização, a eminente apresentação de seus signos.  Desta perspectiva, ele aponta sua idéia de linguagem ativa para a cena:

“... Trata-se de nada menos do que mudar o ponto de partida da criação artística e de subverter as leis habituais do teatro. Trata-se de substituir a linguagem articulada por uma linguagem de natureza diferente, cujas possibilidades expressivas equivalerão à linguagem das palavras, mas cuja fonte será buscada num ponto mais recôndito e mais recuado do pensamento.”  

Com este apontamento, Artaud visava contestar o psicologismo latente na cena ocidental de sua época, onde havia o que ele chama de obsessão pela palavra clara, saudando com reverência o teatro oriental, no qual a música das palavras fala diretamente ao inconsciente, numa espécie de linguagem de gestos, atitudes e signos.  E reafirma:

“A encenação pura contém, através de gestos, de jogos fisionômicos e atitudes móveis, através de uma utilização concreta da música, tudo o que a palavra contém, e, além disso, dispõe da própria palavra. Repetições rítmicas de sílabas, modulações particulares da voz envolvendo o sentido exato das palavras, precipitam em maior número as imagens no cérebro, em favor de um estado mais ou menos alucinatório, e impõem à sensibilidade e ao espírito uma maneira de alteração orgânica que contribui para tirar da poesia escrita a gratuidade que geralmente a caracteriza.” 

 

A busca artaudiana da linguagem, digamos, encantatória não só nos favoreceu refletir sobre a derrubada completa do sistema de valores e de formas na qual se fundamentava a arte da encenação até esta fase, como também abriu as comportas para toda uma sorte de experimentos na cena a partir dos anos vinte do século passado, culminando em propostas contemporâneas, como a já mencionada Arte da Performance.

A performance vem se estabelecer como arte específica, apenas nos anos setenta do século XX, calcada tanto em novos experimentos no campo das Artes Cênicas, como no território de diferentes artes, configurando-se no amplo conceito de performance cultural, enquanto linguagem de soma, apoiada no discurso da encenação. Sobre tal afirmativa, discorre Renato Cohen:

 

“... o discurso da performance é o discurso de mise en scène, tornando o performer uma parte e nunca o todo do espetáculo (mesmo que ele esteja sozinho em cena, a iluminação, o som etc. serão tão importantes quanto ele – ele poderá ser todo enquanto criador mas não enquanto atuante).” 

 

Entretanto, este enfoque no discurso de mise en scène, na cena-multiplex code  e na teatralidade como veículos para a experiência cênica numinosa , não se transfigura enquanto fenômeno exclusivo ou original da Arte da Performance e das demais expressões artísticas contemporâneas. 

Faz-se mister atentar, concomitantemente, que as manifestações populares brasileiras, como o Cavalo Marinho pernambucano (Bumba-meu-boi) apresentam, desde seu surgimento enquanto performance cultural, tendências metafísicas , na medida em que na sua expressão imperam a musicalidade, o gesto, a imagem, o prazer ritualístico da cumplicidade e a reafirmação do corpo coletivo, em detrimento de qualquer sentido intelectivo ou psicológico.

As manifestações espontâneas da cultura de um povo no caso, o povo brasileiro, surgem como misto de tradicionalismo e improvisação. Espetáculos como o Cavalo Marinho em especial, seguem um fio, por vezes, tênue, da tradição oral, que passa de geração a geração, mas que são constantemente recriados, dependendo da época e das circunstâncias particulares. O romanceiro, o cancioneiro, o anedotário, o brincante de uma região como o Nordeste acham-se em permanente mudança, mesclando-se a elementos da cultura oficial e elaborada. 

Foi a ressonância de idéias como as de Artaud e depois as de Bertolt Brecht  com as formas espetaculares do povo brasileiro, que levou o pesquisador pernambucano Hermilo Borba Filho a galgar a prática de uma arte cênica brasileira, entre as décadas de 40 e 70 do século passado. 

Hermilo mostrou-se um conhecedor consciente do misterioso percurso do espetáculo através da história e, ao mesmo tempo, um investigador fascinado pelos folguedos populares nordestinos. Foi por intermédio destas vivências nos meandros da pesquisa, que encontrou presentes no nosso Bumba-meu-boi uma série de pontos relacionados com os manifestos de Antonin Artaud e com a teoria do “teatro épico” de Bertolt Brecht.  

O pesquisador almejava fomentar, através desta investigação, uma prática de espetáculo nordestina, de certo modo baseada em reflexões artaudianas e na teoria alemã de teatro, ou ainda em toda uma estética universal do teatro encontrada na prática no nosso drama popular. Sobre a confluência destes dois pensadores do teatro, discorre Anatol Rosenfeld:

 

“Artaud e Brecht coincidem na sua luta contra o teatro digestivo ou culinário, assim como na tendência de obter uma nova relação entre palco e platéia. O desempenho épico, com direção ao público, o envolvimento deste num plano que suspende a separação entre espectador e ator e force este a tomar parte mais ativa na ação, ultrapassando a identificação passiva da contemplação desinteressada – todas essas concepções elaboradas por Brecht correspondem de um ou de outro modo às teses de Artaud.” 

 

A idéia de Borba Filho era fundamentar de modo decisivo uma estética própria, uma linguagem dialógica, que objetivava, sobretudo, a concepção de um espetáculo total, tomando-se por base os espetáculos dramáticos populares da região. Da perspectiva de Hermilo, Roger Bastide reafirma que existe, potencialmente, no “folclore brasileiro”, um teatro nacional. Diz ainda:

“O Bumba-meu-boi, a Nau Catarineta (...) peças que ainda hoje são repetidas, e que estão cheias de símbolos, de visões dramáticas da alma humana e do mundo, e que poderiam fornecer o mesmo ponto de partida para o teatro brasileiro que a paixão de Baco forneceu para o teatro grego, a paixão de Cristo para os ‘mistérios’ medievais, as legendas heróicas ou amorosas para o ‘Nô’ 

japonês ...”. 

 

É importante frisar, que nas investigações de Hermilo, o Nordeste não surgia como pano de fundo, mas enquanto realidade humana, matriz geradora dos elementos constitutivos dessa arte, que, partindo do particular-local atinge o universal-brasileiro como expressão artística da cultura de um povo.

Desta forma, quebrava-se com o caráter regionalista da arte, trancada em si mesma, pitoresca ou exótica, para se chegar a contextos memoriais de toda a nação. Na busca de Hermilo, esta arte traria configurada a vida do homem do Nordeste, do ser humano numa região do planeta, propiciando a aproximação com a realidade vivida por outros homens, em outras regiões, enfim, a vida transfigurada por uma arte cujo compromisso é com o homem e com a terra.

O que Hermilo desejava, em vias práticas, era um teatro com o canto, a dança, a máscara, o boneco, o bicho. A recriação do espírito popular nordestino pelo costume, pelo hábito, pela cultura, a religiosidade; o homem brasileiro posto no palco com a luta, o sofrimento, a derrota, a insistência, a vitória; um teatro de intensidade emocional e crítica, um teatro vivo, aberto, permitindo e possibilitando ao público a compreensão maior de sua própria história. O teatro como um ato político e religioso a um só tempo, comprometido com a memória e a sacralidade.

E pondo termo ao seu Manifesto do Teatro Popular do Nordeste , sintetizou uma proposta:

 

“O TPN propõe-se, desse modo, a fazer uma arte popular total, fundamentada na tradição e na dramaturgia do Nordeste. Mas, a primeira coisa que vem anunciada em seu nome é o teatro: não um teatro, mas todo o teatro fiel. Enquanto pudermos, nós manteremos vivo em nossa comunidade o teatro que não é mundano, acadêmico, frívolo, por um lado, nem demagógico por outro; o eterno teatro de sempre, vivo, vigoroso, com o que tem de celebração, de ritual, de jogo de pelotiqueiros e saltimbancos, de jograis do humano e do divino, ato de justiça e de amor à comunidade – enfim, o teatro, nossa dura servidão, aceita livremente para a esperança da justiça e a alegria da liberdade.” 

I. Das Trajetórias 

I.I. Teatro do Povo do Nordeste: O Cavalo Marinho Pernambucano

“Sem dúvida, esse Bumba-meu-Boi parece ser uma coisa que ajuda a humanidade inteira. (PEREIRA, ANTÔNIO)

As formas de Teatro do Povo do Nordeste - especificamente os espetáculos de: Mamulengo, Chegança, Pastoril e Cavalo Marinho (Bumba-meu-boi pernambucano), que possuem uma estrutura dramática definida - têm encontrado poucos estudiosos no Brasil, suscitando ainda o mínimo enfoque crítico a que fazem jus.

Como atesta Marco Camarotti , isso se deve, possivelmente, à inexistência de modelo ou escola crítica que possa apoiar tal investigação. Não obstante, foi Camarotti um dos estudiosos, que traçou recente panorama destas quatro manifestações, precedido pelo notável trabalho realizado entre os anos 40 e 70  por Hermilo Borba Filho, que, antes de tratá-las “como espécies de arte pitoresca ou exótica, encara-as com seriedade, por reconhecer nelas um importante campo para a investigação erudita”. 

Faz-se necessário afirmar, continua Camarotti, que a taxação de “exotismo” e “autenticidade” comumente atribuída a essas manifestações, decorre de “idéias típicas de culturas pós-coloniais”, as quais necessitam elaborar sinais que possam reafirmar e enfatizar sua nova condição de nações independentes, aglutinando-as no nicho da cultura popular. O mesmo Camarotti utiliza-se da reflexão de Anuradha Kapur para fundamentar sua afirmação:

“Classificar produtos culturais ou formas tradicionais como autênticas é nivelá-las por baixo, é fazê-las coerentes à força. Autenticidade torna-se então uma categoria hospitaleira que, enquanto revela algo a respeito da igualdade das coisas, toma pouco conhecimento do que lhes é específico, fazendo formas díspares parecer enganosamente homogêneas”. 

Segundo Kapur, “autenticidade” ou “identidade” não podem ser os melhores indicadores para se compreender o teatro folclórico, pois tendem a tomá-lo como se pertencesse a um campo unificado chamado Tradição.

Além dos estudos sobre este teatro por parte dos já citados pernambucanos, Hermilo Borba Filho e Marco Camarotti, outros registros, até anteriores, podem ser verificados no âmbito do Folclore e da Antropologia. Desses estudos podemos destacar Danças Dramáticas do Brasil, de Mário de Andrade, e o Dicionário do Folclore Brasileiro de Luiz da Câmara Cascudo, dentre outros teóricos, todos advindos do século XX. 

No entanto, é explícita a forma descritiva como estas manifestações são tratadas na maioria das pesquisas, mesmo as mais profundas. É também notório o maior interesse nas origens e nos aspectos aparentes destas expressões cênicas, sem enfoque nas matrizes de construção destes espetáculos e nas relações que estes possam vir a ter com outras manifestações artísticas.

 Afirma Mário de Andrade que toda transfiguração original das danças dramáticas tem, no Brasil , um fundo religioso, remontando os ritos primais e apresentando características referentes a questões existenciais do ser humano, tais como a morte e a ressurreição, o que se pode verificar no espetáculo do Bumba-meu-boi (Cavalo Marinho pernambucano), por exemplo .

Contudo, é provável que estes espetáculos não tenham como fonte de influxos, apenas a hipotética idéia dos ritos primais, o que seria uma explicação um tanto simplista. Camarotti fundamentado em E. T. Kirby e William Ridgeway  também aponta a influência da origem deste teatro na adoração dos mortos.

 Desta perspectiva, desenvolve-se a noção do ator como sendo originariamente um médium, uma espécie de xamã ou mestre dos espíritos . A atuação xamanística poderia ser, por este caminho, uma forma embrionária deste teatro.

 Algumas evidências para esta relação com o xamanismo são encontradas no Teatro do povo do Nordeste, principalmente, nas sessões de cura e nos discursos do doutor  sobre suas viagens e habilidades em curar doentes, além da presença do hobby-horse  e do travestismo , aspectos estes recorrentes nas diversas brincadeiras.

Essas expressões, mesmo tendo mantido algo do caráter religioso como visto na configuração de suas possíveis origens, constituem manifestos de relações sociais e políticas, ou seja, têm um forte caráter de resistência cultural, além de serem poderosos instrumentos de educação informal, reafirmando a cosmovisão daqueles que a praticam.

É provável que, no Nordeste do Brasil, o Teatro folclórico venha sendo praticado desde o princípio da colonização, apresentando intensa expressão dramática e refletindo a cultura de toda uma região. Contudo, os registros mais remotos da trajetória deste teatro são referências encontradas em livros do século XVIII e jornais do século XIX, entre as quais muitas podem ser consideradas duras críticas contra essas manifestações, taxadas, muitas das vezes, de anárquicas.

Exemplo disso é o artigo A Estultice do Bumba-meu-boi, publicado no jornal O carapuceiro, de 1840, no Recife. No texto, assinado pelo padre Lopes da Gama, está explicitada a indignação com a brincadeira, que para ele não possui nenhum mérito, pois não tem uma trama clara, nem verossimilhança, nem mesmo seqüência lógica. 

O Teatro do povo do Nordeste, mais especificamente Bumba-meu-boi, que tem especial relevo nesta reflexão, não se fecha num espaço convencional, podendo ser representado em qualquer parte, bem como suas apresentações são eventuais ou sazonais.

Existem inúmeros estudiosos do Bumba no Brasil. Além dos já citados Câmara Cascudo, Mário de Andrade e Hermilo Borba Filho, conta-se com contribuições valiosas de Melo Moraes Filho, Pereira da Costa, Gustavo Barroso, Arthur Ramos, Samuel Campelo, Ascenso Ferreira, Théo Brandão e Sílvio Romero. Uns ativeram-se ao canto, como este último; outros à dança como Mário de Andrade (1982), outros, ao canto, ao texto e à teatralidade, como são os casos de Hermilo (1982) e Ascenso Ferreira (1944). 

Segundo o pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco, João Denys de Araújo Leite, o Bumba, ao contrário do que preconizam muitos estudiosos, resiste ao tempo, às transfigurações por ele impostas, às contradições da cultura, aos usos e abusos que dele fizeram os discursos nacionalistas de todos os quadrantes político-ideológicos, e ainda diz, o Bumba-meu-boi continua morrendo em pleno século XXI, vivo em praças e pátios, nos meios de comunicação, e muitos deles legitimados pela indústria cultural .

Tradicionalmente representado durante o ciclo natalino, o Bumba-meu-boi é também chamado na Paraíba e em Pernambuco de Cavalo Marinho, referindo-se à estrutura de indumentária vestida pelo personagem do capitão (um cavalo) . O capitão é, comumente, dono da brincadeira. 

Como registra Borba Filho, em outras regiões, o Bumba recebe nomes diferenciados: Boi-Bumbá (AM), Boi de Reis (MA), Boi Surubim (CE), Boi Calemba (RN), Bumba-de-Reis (ES), Reis de Boi (RJ), Boi Mamão (SC) e Boizinho (RS). 

Para o deleite da curiosidade, João Denys registra o significado da denominação principal da brincadeira, Bumba:

 

“Bumba quer dizer tunda, pancadaria provocada pelas bexigas de boi infladas e acionadas pelas figuras de Mateus e Bastião, que batem com elas em outras figuras, às vezes no público, no chão, ou no próprio corpo, produzindo um som de pancada violenta, um estampido que quer dizer também viva! Anime-se! Dance, meu boi!” 

 

É provável que o Cavalo Marinho ou Bumba-meu-boi de Pernambuco tenha nascido perto do litoral, no final do século dezoito, tendo logo se espalhado pelo interior. Seu ambiente original foi a zona rural, onde se localizavam os antigos engenhos de açúcar e as fazendas de gado.

De origem mestiça, com predomínio do elemento negro, o Bumba nasce do desejo de folgar, de aliviar a exaustão do trabalho, de mangar, de uma forma muito peculiar de rezar brincando, de cantar, dançar e dialogar, de vingar das injustiças e opressões.

O brinquedo, como chamam seus participantes ou brincantes, está ligado à velha e diversificada tradição do mito do touro poderoso. Mito que pode ser encontrado nos hinos, lendas e tradições de muitas civilizações ao redor do mundo, como um símbolo de fecundidade.

O tema–base ou leimotiv principal da brincadeira é a morte do animal e seu retorno à vida. Mário de Andrade estende essa idéia a todas as danças dramáticas acrescendo as raízes mágicas e religiosas. Na realidade, as mais significativas formas dramáticas partem quase sempre dessa necessidade elementar de sobrevivência e integração cósmica, transfigurando a vida na morte e a morte na vida, como afirma João Denys .

No passado, o Bumba era um auto hierático que fazia parte dos Reisados, nome dado a um grupo variado de representações folclóricas nas quais o canto e a dança são predominantes. Em algum momento, houve uma separação destes reisados em relação ao auto, tornando-se este, uma manifestação independente no Nordeste e em outras regiões do país.

O Cavalo Marinho não utiliza palcos ou praticáveis. Como citado anteriormente, é representado no chão, sempre ao ar livre, com a platéia de pé, formando um círculo ao redor dos atores. Sobre essa afirmativa, discorre Denys:

 

“O Bumba é um espetáculo do ar e da terra; dos espaços abertos; da circularidade e fronteiras arbitradas por seus participantes (públicos e atores). Manifesta-se em todo o Brasil e seu nome, assuntos, formas, cores, personagens ou figuras recebem denominações diferentes de acordo com o chão onde se desenvolve. A denominação mais antiga e usual é Bumba-meu-Boi, Bumba ou simplesmente Boi.”  

 

Durante o espetáculo, observa-se a busca por uma total comunhão dos assistentes com os brincantes, por meio da integração das linguagens artísticas e da interferência direta no decorrer da narrativa.

Ele é uma das manifestações brasileiras de maior duração. Suas apresentações geralmente começam à noite e podem estender-se por cerca de oito horas, aproximadamente. Diz Hermilo sobre o ato da apresentação:

 

“Bebem os atores e bebe o público, numa variante atual das comemorações a Dionísio – o deus grego do teatro – quando os sátiros e as bacantes entregavam-se à orgia. E há até outro elemento de aproximação: A máscara. Num Boi de Natal os figurantes usavam máscaras de pele de bode e é singular que isso aconteça, pois o bode (tragos, em grego, daí se originando a palavra tragédia) era o animal que se identificava com o deus Dionísio, os sátiros (companheiro do deus) vestiam-se com suas peles e eles se assemelhavam pela caracterização”. 

 

O momento da brincadeira é assim, um instante de partilha entre espectadores e atuantes, valendo, neste contexto, vivências do cotidiano dos brincantes, do público, além das próprias figuras, nome dado às personagens do espetáculo, que se situam nas categorias de: humanas, animais e sobrenaturais ou fantásticas.

Podemos encontrar mais de quarenta figuras diferentes no Cavalo Marinho, dentre eles: o Capitão; Catirina; Mateus; Bastião; o Mestre Ambrósio; a Pastorinha; a Burrinha; D. Joana; o Babau; o Jaguará; a Ema; o Mané Gostoso; o Mané Pequenino; o morto-carregando-o-vivo, entre outros que se sucedem nos diversos e fragmentados episódios da brincadeira.

A trama deste espetáculo, como visto, é sempre conhecida, não significando um motivo de descontentamento para o espectador, que vê ativado seu campo mítico, por intermédio da fusão da dança, da música e da própria narrativa em episódios, compartilhados durante todo o tempo do brinquedo. Sobre esta fusão, mais vez, afirma João Denys:

 

“Desde sua gênese, o Boi é híbrido tanto no sentido étnico, quanto no sentido da apropriação e aglutinação de episódios, temas, personagens e demais manifestações cênico-dramáticas: o elemento português, com toda uma carga da tradição ibérica e européia de representação popular, principalmente as herdadas da Idade Média; os elementos indígena e negro, com seus mitos, seus cantos, suas danças, sua plumária; enfim, seus ritmos, ritos e formas de representação simbólica.” 

 

Como é natural, este teatro transmite-se tradicionalmente, oralmente, além de ser produzido por e para pequenos grupos de pessoas, os quais pertencem à mesma comunidade, seja ela rural ou urbana. 

Novamente tendo como base a experiência de Anuradha Kapur com a Ramlila de Ramnagar , percebemos que formas de teatro folclóricas, como o Cavalo Marinho pernambucano, são não-naturalistas, portanto, abertas e mutáveis. Não só reconhecem a presença da platéia, como abordado, mas também reforçam o fato de que, no teatro, atores e espectadores juntos é que criam o sentido, num processo de cumplicidade, colaboração e valorização do instante-presente. 

 

I.II. A Arte da Performance

 

“A  arte lida com verdade, lida com a transcendência, lida com imanência, é um dos veículos para o ser humano tomar contato com estados superiores de consciência.” 

 

Sem adentramos no terreno obscuro e incerto de antepassados longínquos dos ritos tribais, podemos dar relevância ao Kabuki e ao Nô japonês como influência distante - mas comprovada - à Arte de Performance, bem como, podemos afirmar que sua presença mítica encontra-se na celebração dionisíaca dos gregos e romanos, na purgação do pathos trágico, nos mistérios medievais, na commédia dell’Arte, sem falar dos espetáculos organizados por Leonardo Da Vinci no século XV e Giovanni Bernini, duzentos anos depois.

 No entanto, é a partir do movimento das vanguardas no século XX que a performance começa a se configurar como linguagem artística específica e independente, atingindo este status no início dos anos setenta. No entender de Jorge Glusberg , o futurismo na Itália, França e Rússia, o dadaísmo, o surrealismo e a Bauhaus, constituem-se a pré-história mais próxima de nós. Valendo ainda lembrar, neste contexto histórico de influxos, a cena expressionista de Wedekind e Kokoshka .

Segundo Glusberg, esses movimentos usavam a idéia de performance como meio de provocação e desafio, em sua ruidosa batalha para romper com a arte tradicional e impor novas formas de arte:

 

“O que se buscava era uma vasta abertura entre as formas de expressão artística, diminuindo de um lado a distância entre vida e arte, e por outro lado, que os artistas se convertessem em mediadores de um processo social (ou estético-social).” 

 

Não há como não mencionar que antes mesmo dos movimentos da avant-garde, advindos, primordialmente, do ano de 1910, Alfred Jarry já instaurava a ambiência da performance art, com a estréia de Ubu Rei, no Théâtre de L’Oeuvre de Paris de Lugné-Poe, em 1896.

Neste mesmo período na Rússia, Serge Diaghilev transformava o balé numa síntese de dança, música e artes visuais, valorizando cada linguagem enquanto singularidade e enquanto conjunto, formando com Nijinski, Fokin, Ana Pávlova, compositores e pintores da época, um grupo de artistas que não se submetia ao academicismo. 

Vale ressaltar a presença da “desconstruida” música de Igor Stravinski neste agrupamento, com quem Nijisnky encenou, em 1913, a Sagração da Primavera, bem como os pintores da estirpe de Matisse, Miró e Max Ernest. Em 1916, há a abertura do Cabaret Voltaire em Zurique, onde acontecerá a origem do movimento Dadá, com a participação de figuras como: Kandinsky, Tristan Tzara, Richard Huelsenbeck, Rudolf Von Laban, dentre outros.

No ano seguinte, em Paris, duas estréias são pertinentes de serem citadas como também fundamentais na pré-história do gênero: Parade, de Jean Cocteau e o vaudeville, Les Mamelles de Tirésias, de Guillaurme Apollinaire, revolucionando o conceito de dança e encenação.

É a partir destes trabalhos e do lançamento da revista Littérature por André Breton, Paul Elouard, Philippe Soupault e Louis Aragon, que começam a se criar os suportes para o advento surrealista, que, em termos cênicos, vai seguir a tática e ideologia da “estética do escândalo”. Segundo Renato Cohen , é clara a identificação entre as atitudes dos surrealistas nos anos 20 e os futuros happenings dos anos 60.

Nesta mesma década de vinte, por intermédio de Oskar Schlemmer, a Bauhaus, na Alemanha, desenvolve importantes experiências cênicas, que objetivam uma “fusão das artes”, e de um ponto de vista humanista, a integração entre arte e tecnologia.

Pelo caminho específico das Artes Cênicas, o francês Antonin Artaud insurge com sua coletânea de ensaios, redigidos entre 1931 e 1937 e publicados sob o título de O Teatro e seu duplo. Neste compêndio, que Jean-Louis Barrault considera “de longe a coisa mais importante que se escreveu acerca do teatro no século XX” , Artaud busca revelar, dentre outras questões, um programa em favor de um retorno à metafísica, à tradição e ao teatro total. 

Bebendo nas formas orientais de espetáculo, o profeta do teatro define temas, técnicas e elementos de concepção teatral, que não só revolucionaram uma época onde a arte estava abandonada à sorte de virtuosismos, mas influenciaram toda uma geração de reteatralizadores como Julian Beck e Judith Malina, com o Living Theater; Joseph Chaikin; Jerzy Grotowski, com o seu Teatro Laboratório, Eugênio Barba, com o estudo e prática da Antropologia Teatral, além das investidas cênicas do diretor inglês Peter Brook, contemporaneamente. 

Em paralelo, a dança também começava a se libertar de códigos e futilidades, não só pelo viés espetacular, como havia realizado antes Diaghilev e seus colaboradores, mas como processo, através dos estudos dos pontos de energia do corpo e euritmia de Delsarte e Dalcroze; das práticas dionisíacas de Isadora Duncan e da busca oriental de Ted Shawn e Ruth Saint-Denis.

A pesquisa da poderosa energia interna do já mencionado Rudolf Von Laban, bem como da análise dos movimentos geométricos de Mary Wigman e os temas míticos de Martha Graham, também são de grande relevância para este momento de transformação no contexto artístico mundial, sendo grande parte destas revoluções para a dança dita moderna, situadas, geograficamente, no universo norte-americano. 

Os Estados Unidos vão ser assim o principal pólo do movimento de re-integração das Artes e da idéia da performance como linguagem, a partir da década de 30. Isso se deu, principalmente, pela fundação da Black Mountain College, na Carolina do Norte, em 1936. 

Tal instituição tinha como intuito trazer as experiências dos europeus para a América, surgindo, nesse contexto, artistas como o músico John Cage e o coreógrafo Merce Cunninghan, que se destacaram, no universo da performance, investindo em concertos de silêncio e ruídos, bem como na dança fora do compasso da música, por exemplo.

Em 1959, happening é o novo nome-conceito dos espetáculos sitos em Nova York, tendo como principal expoente Allan Kaprow, oriundo das Artes Visuais. No entanto, não só Kaprow destaca-se neste movimento, mas Andy Warhol, Claes Oldenburg, o atuante da action paiting, Jackson Pollock, além do Grupo Fluxus, todos da mesma origem artística.

O happening vale-se das várias mídias, sendo produzido maciçamente nos anos 60, como expressão da recém-chegada contracultura e do movimento hippie. Cohen define o happening como vanguarda catalisadora, alimentando-se do que de novo realiza-se nas diversas artes. Diz ele:

 

“Do teatro se incorpora o laboratório de Grotowski, o teatro ritual de Artaud, o teatro dialético de Bertolt Brecht; da dança, as novas expressões de Martha Grahan e Yvonne Rainier, para citar alguns artistas. É das artes plásticas que irá surgir o elo principal que produzirá a performance dos anos 70/80: action paiting.” 

 

Glusberg traz em seu livro A Arte da Performance um trecho da declaração assinada por cinqüenta autores de happenings da América, Europa e Japão, em 1965, que vale a pena constatarmos para maior compreensão do gênero:

 

“Articula sonhos e atitudes coletivas. Não é abstrato, nem figurativo, não é trágico nem cômico. Renova-se em cada ocasião. Toda pessoa presente a um happening participa dele. É o fim da noção de atores e público. Num happening, pode-se mudar de “estado” à vontade. Cada um no seu tempo e ritmo. Já não existe mais uma “só direção” como no teatro ou no museu, nem mais feras atrás das grades, como no zoológico.” 

 

Acresce ainda Glusberg que nenhuma lista de artistas que trabalhou em happenings estaria completa sem os nomes já citados de Kaprow, Whitman, Oldenburg, Grooms, Dine, Hansen e Brecht, nem os de Rauschenberg – que colaborou com a companhia de dança de Merce Cunninghan por muitos anos – Meredith Monk, Higgins, Watts, Robert Moris, Michael Kirby, Young, Nam June Paik, Carolee Schemann, Vostell, Bazon Brock, Jean-Jacques Lebel, Bob Con, Benjamim Patterson, Ben Vautier, Marta Minujin,e Milan Knizak. Esta lista precisaria, diz ele, também incluir os nomes de Joseph Beuys, Cage, Cunningham e Jean Tinguely.

Nesta mesma década de sessenta, Yves Klein ainda expõe uma fotografia dele no momento em que saltava para a rua, sendo ele o próprio autor e protagonista de sua obra ou até a obra em si. O Salto no vazio, título deste trabalho é considerado marco zero do que se chama Arte da Performance. 

Esse caráter de desvendamento do ser do artista como obra, explicitado pelo trabalho de Klein, já era preconizado pelos tantos outros predecessores citados e, especialmente, pelas palavras de Jerzy Grotowski, ao indicar sua tese sobre o teatro pobre, com o que chama de via negativa:

 

“Devemos visar à descoberta da verdade em nós mesmos, arrancar as máscaras atrás das quais nos escondemos diariamente. Devemos violar os estereótipos de nossa visão do mundo, os sentimentos convencionais, os esquemas de julgamento”. 

 

Na década de setenta, as experiências no gênero tornaram-se, esteticamente, mais elaboradas, revelando com mais destreza e nível diferenciado algumas convenções das artes cênicas, que passam a servir sob o ponto de vista plástico e sígnico, não pelo uso de temas dramatúrgicos, nem da palavra impostada, como na arte teatral.

No Brasil, a Arte da Performance começa a se estabelecer pelo caminho do teatro experimental preconizado pela vinda, na década de sessenta, do grupo Living Theatre e do encenador Robert Wilson, além de Victor Garcia e Jèrome Savary. Faz-se mister observar que é só na década de oitenta que a Performance começa a se difundir como linguagem em São Paulo. De acordo com Renato Cohen, é com a criação de dois centros culturais: o Centro Cultural São Paulo e o Sesc Pompéia, que se abre espaço para manifestações alternativas, tendo como atuantes mais representativos, figuras advindas do teatro como Denise Stocklos; Das artes plásticas como Ivald Granatto, Guto Lacaz e Aguillar, dentre outras mídias.

É o mesmo artista-pesquisador, Renato Cohen, quem traça uma cartografia pioneira desta cena no Brasil, nutrindo a escassez de reflexões sobre este campo com a obra Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação e Work in Progress na cena contemporânea, cena esta que encontra ecos, quase que maciçamente, no sudeste do país. 

Como pudemos observar na trajetória da linguagem, a Performance firmou-se como expressão anárquica de resistência à “arte-estabelecida” e ao sistema sócio-cultural, absorvendo influências de artistas advindos do campo das artes visuais e cênicas, além da própria música e da multimídia. 

É possível confirmar que, por esta rede de influxos, a Performance carregue em si a hibridez, a característica de multiplex code, uma bricolagem de diversas linguagens numa só expressão, provocando o espectador a estabelecer o ato colaborativo na recepção, muito mais pela via cognitivo-sensorial, do que pela via racional.

Na relação performer-público na Arte da Performance, não se entende haver a submissão a regras pré-estabelecidas ou sistemas pré-concebidos, valoriza-se sim a relação do instante-presente, a ritualização das questões básicas e existenciais, bem como a liberdade da criação, pelo viés da integração.

As tramas dos espetáculos em Performance, ou melhor dizendo, os leitmotive  por onde giram as cenas, são apoiados, geralmente, em temas míticos, existenciais, mitologias pessoais, que, de forma não-aristotélica, encadeiam-se num discurso fragmentado de mise en scène. Esta linguagem que tem, em seu fundamento, a cena não-naturalista, a espontaneidade e a mutabilidade como território de experiência, vem sendo pesquisada por diversos grupos, conduzindo-os ao preenchimento da cena contemporânea no Brasil e no mundo.

II. Das Intersecções 

“A ponte não é de concreto, não é de ferro. Não é de cimento. A ponte é até onde vai o meu pensamento. A ponte não é para ir nem pra voltar.A ponte é somente pra atravessar.” 

Apesar de está conceituado como uma forma de teatro, o Cavalo Marinho, como atesta Camarotti, parece situar-se em algum lugar ENTRE o ritual e o teatro . No Cavalo Marinho, a vivência na integração das linguagens artísticas, as narrativas fragmentadas e míticas, a focalização no ator / brincante como centro do ato artístico pleno enquanto indivíduo e ser social, designam o lugar fronteiriço e distante da arte convencional. É necessário ainda colocar em destaque a principal característica liminar que é a relação com a platéia, onde esta é constantemente, motivada a participar, mais do que simplesmente observar a brincadeira.

Por todas estas evidências entre as estruturas, os elementos e a essência espetacular, podemos situar a manifestação do Cavalo Marinho como mais próxima da outra vertente de performance cultural em foco, a arte híbrida e não linear da performance, do que propriamente da linguagem do teatro, ao menos, o teatro de cunho convencional.

A Arte da performance identifica-se com Teatro do Povo (Cavalo Marinho), nas suas características mais intrínsecas: a soma de linguagens; os espaços abertos e alternativos para as encenações; a atuação histriônica de seus atuantes; as tramas ou leitmotive míticos, além do estado de cumplicidade e colaboração entre os participantes do ato artístico.

A ausência de encadeamento lógico e a justaposição de recursos na narrativa, que são outras características na brincadeira do Cavalo Marinho, revestem-na de clara função dialógica para com expressões artísticas contemporâneas, especificamente a Arte da Performance.

As performances culturais, sejam performances artísticas ou rituais, por traçarem o modo subjuntivo das sociedades, trafegam, geralmente, pelo território do lúdico. Uma definição de performance, segundo Richard Schechner , é a de que ela vem a ser um ambiente ritualizado, condicionado e permeado pelo jogo. O mesmo Schechner discorre que a característica ritual, nas performances, eleva o caráter de cerimônia, de seriedade, enquanto que o jogo revela sua essência lúdica, de permissividade da manifestação, gerida pelo já mencionado princípio do prazer. 

No entender de Don Handelman , ritual e jogo são sombras / imagens de um ou outro, são tipos de mensagem que se transmitem da ordem social. Eles são análogos estados da cognição e percepção. No ritual, diferente da vida ordinária, onde os eventos são geralmente espontâneos, as ações são previamente organizadas em exibição, num status de apresentação, que trafega tanto no âmbito do real, quanto no lócus simbólico.

Expressando o universo humano e social, tanto o ritual quanto o jogo, presentes no Cavalo marinho e na Performance Art atuam, fortalecendo crenças comuns, controlando circunstâncias, regendo comportamentos e modificando percepção e conhecimento.

O antropólogo Victor Turner  atesta que o jogo é volátil e, quase sempre, perigoso, carregando em si uma essência explosiva. O jogo, diz ele, é um supremo bricoleur e por meio dele são elaboradas metamensagens que compõem um pout-pourri de aparentes elementos incongruentes. 

A experiência externa do jogar / brincar pode ser mapeada pelas habilidades de entendimento da linguagem do corpo, do gesto e da face. Já a experiência interna é privada e varia a cada um. Várias pessoas participam de um mesmo evento com experiências diversas, que não são cotidianas, mas obedecem a um estado de fluxo interno pessoal e único.

No estado de fluxo, a ação segue de acordo com uma lógica interna sem intervenção da consciência. É uma experiência unificadora e autônoma. O jogador na atuação, na representação do papel ou o atleta na zona do jogo estão na experiência deste estado. 

Nas performances culturais analisadas, a Arte da Performance e o Cavalo Marinho, a idéia de imersão em estado de fluxo é vivenciada aos limites, tanto pelos jogadores (performers / brincantes), como também no ato de cumplicidade com o público, que é constantemente convidado a participar da ação do jogar, seja de forma direta ou indireta.

No Cavalo Marinho, o público participa diretamente das ações do espetáculo: dançando, bebendo, brincando entre os brincantes. Em muitos trabalhos na linguagem da performance, a fruição é indireta, na medida em que os sentidos são ativados sem que necessariamente o público precise atuar intervindo na ação entre os performers.

 Como vimos anteriormente, é comum usarmos a denominação de brincantes para os atuantes do Cavalo Marinho e o termo brincadeira como sinônimo para o mesmo espetáculo, palavras estas que revelam o manto de ludicidade e espontaneidade no qual está envolvido o espetáculo, bem como a presença do jogo como fundante na expressão. Sobre isso, discorre Hermilo:

 

“Brincar é o que todos os comediantes desses espetáculos (bumba, pastoril, mamulengo) fazem, numa arbitrariedade poética impressionante, e com uma capacidade de improvisação espantosa. Brincar e improvisar, é o que as crianças fazem“. 

 

Na performance como linguagem o sentido do jogo também é exacerbado, seja na atuação dos performers, em ativação do inconsciente e da rede de mitologias ou mesmo na configuração da estrutura cênica, como atesta Renato Cohen:

 

“...Um dos traços característicos da linguagem da performance é ter a collage como estrutura(...) Collage seria uma justaposição de imagens não originalmente próximas, obtidas através da seleção e picagem de imagens encontradas ao acaso, em diversas fontes. O ato da collage é por si só entrópico e lúdico – qualquer criança com uma tesoura na mão faz isso – possibilitando ao “colador” sua releitura de mundo”.  

 

É para essa transgressão, para essa brincadeira, que se move a performance, sendo o fluxo e a ludicidade, assim, suas condições fundamentais. Somente por intermédio desta desobstrução é que se revela e trabalha a humanidade do performer ou do brincante em jogo.

Como visto, relevantes são as intersecções entre as duas expressões cênicas, as quais comungam de um mesmo espírito de resistência e ruptura, de semelhantes formas de apresentação e elementos de formação. Como gênero de Arte, propõe-se que a Performance no Brasil valha-se, em inspiração, de sua presença mítica mais próxima e atuante: o Teatro do Povo, pois ambas as performances culturais buscam a reintegração do ser, criando, ritualisticamente, a comunhão do sentido da vida.

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BIBLIOGRAFIA:

1. Livros:

 

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2. Artigos

 

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3. Trabalho Científico 

 

LYRA, Luciana de Fátima Rocha Pereira de. Mito Rasgado; Performance e Cavalo Marinho na cena In processo. 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas-SP, 2005. 

 

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