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Do romance ao teatro: a cartografia cĂȘnica de Homens e CaranguejosLuciana Lyra

A família Silva mora nos "mangues" da cidade do Recife, num "mocambo" que o chefe da família fez quando chegou de cima. A família é originária do sertão. Desceu do Cariri, na seca, perseguida pela fome. Fez uma paradinha no brejo, para tentar o trabalho das usinas, mas não se pode agüentar com salários dessa zona, sem direito a plantar senão cana. Sem ter, nem ao menos o recurso do xiquexique e da macambira, como no sertão, para quando a fome apertasse. Nesse tempo espalharam pelo interior um boato que o governo tinha criado um ministério para defender os interesses do trabalhador e que com os fiscais da lei, ávida na cidade estava uma beleza, trabalhador ganhando tanto que dava para comer até matar a fome. A família Silva ouviu esta história, acreditou piamente e resolveu descer para cidade para gozar das vantagens que o governo bom oferecia aos pobres. Logo de chegada a família viu que a coisa era outra. Não havia dúvida que a cidade era bonita, com tanto palácio e as ruas fervilhando de automóvel. Mas a vida do operário, apertada como sempre. Muita coisa para os olhos, pouco prá barriga.

Esse pequeno texto introdutório em grifo é de autoria do geógrafo pernambucano Josué de Castro, que, em 1935, enveredou pela literatura reunindo contos de sua autoria no volume Documentário do Nordeste. Entre os contos então publicados, encontra-se este, intitulado Ciclo do Caranguejo, que só bem mais tarde, em 1967, vem a se transformar em seu único romance Homens e Caranguejos. Nos meandros desta história, Castro discorre sobre o cotidiano da Aldeia Teimosa, comunidade ficcional, onde não se paga casa, come-se caranguejo e anda-se quase nu.  Diz ainda que o mangue é um paraíso. Sem o cor-de-rosa e o azul do paraíso celeste, mas com as cores negras da lama, paraíso dos caranguejeiros. No mangue o terreno não é de ninguém é da maré.  

Nascido no Recife, em 5 de setembro de 1908, Josué de Castro veio a falecer em Paris, no exílio a que fora condenado pelo regime militar brasileiro, ao completar 65 anos, em 1973. No entanto, a contemporaneidade da obra do médico, cientista, professor, geógrafo, antropólogo, político, escritor e cidadão do mundo, está mais viva do que antes: o desvelamento, nos últimos tempos, do mito da industrialização e da urbanização a qualquer preço, torna cada vez mais latente as problemáticas antes visualizadas e analisadas por Castro, tanto em seu romance, como nos seus trabalhos científicos mais divulgados internacionalmente, Geografia da Fome,  de 1946,  e Geopolítica da Fome,  de 1951. 

Foi a indignação deste grande pesquisador ante aos descasos sociais e a profusão de imagens sugeridas no romance Homens e caranguejos, que, eu, diretora da Cia. Duas de Criação (PE/SP) juntamente com atrizes-pesquisadoras do Coletivo Joanas Incendeiam (SP), caímos em campo nas comunidades da Ilha de Deus, no coração da cidade do Recife, e do Boqueirão, em São Paulo, buscando descortinar a atualidade da obra de Josué, por meio da criação de uma peça de teatro homônima ao livro, entrecruzando a experiência do cientista, poetizada em seu romance, com a nossa experiência em campo nestas comunidades periféricas.

Traduzido em várias línguas, o romance do geógrafo, já foi adaptado para o teatro pela francesa Gabriele Cousin com o título Le cycle Du crabe ou lês aventures de Zé Luiz, Maria et leurs fils João, em 1969, mas nunca foi encenado e nem outra dramaturgia foi produzida em âmbito nacional, especialmente criando esta interface com comunidades existentes no Brasil contemporâneo. A dramaturgia e a encenação de Homens e Caranguejos, sob minha direção, subsidiada pelo ProAC, da Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo, estreará em maio de 2012,  no Teatro da Unesp, em São Paulo, desvelando por meio do teatro, toda sorte de imagens e textos da experiência de contaminação entre a linguagem da literatura e a realidade do dia a dia das comunidades da Ilha de Deus  e do Boqueirão...

... Prédios apregoando a urbe, palafitas com longas pernas, meninos empinando pipas entre fios elétricos, animais à beira do mangue, porcos, galinhas, cavalos e garças, urubus assentados nas carniças dos entulhos, garrafas pet, sacos de plástico, sapatos, sofás, privadas, bonecas, bolas, poesias... O lixo multiplicando-se no mais íntimo da natureza. Ao lado de casebres em pernas de pau, um condomínio de luxo. De suas sólidas casas e de seus firmes apartamentos, os homens da cidade parecem que nem percebem os caranguejos saindo de suas locas na coreografia da sobrevivência... 

São estas imagens colhidas em campo e associadas às relatadas pelo romancista que passaram a alimentar a criação do espetáculo Homens e Caranguejos.  Entre a Ilha de Deus, o Boqueirão e o laboratório da cena, eu, artista de formação, fazendo-me de aprendiz da Antropologia e construindo uma estratégia metodológica de apreensão das experiências de campo pelos artistas, aprofundo a ideia de Artetnografia, que pode ser entendida, em linhas gerais, pelo cruzamento complexo gerado do contato entre artistas e comunidade, entre eus e alteridades. Sim, eu me surpreendi de como a imersão naquelas realidades potencializa o romance Homens e Caranguejos, de Castro, nossa fonte prima de criação cênica. Por meio da experiência artetnográfica, realidade e ficção entram em f(r)icção. Os anos sessenta do último século decorrido e relatado no livro fazem-se presentes na experiência das comunidades atuais. Imagens do passado de um Josué romanceado se articulam a um presente, eminentemente real e, a um só passo, performático. 

De certa forma, o auge da extraordinária vivência nas comunidades periféricas de duas grandes cidades, foi perceber como a Artetnografia configura-se na experiência. Como as cores, matérias, tons e discursos nos preenchem poeticamente, e dialogam com o livro-base de nossa encenação, transbordando na cena. Como as narrativas acerca do descaso social e sobre a permanente luta política pela natureza, pela sobrevivência, pela identidade estão presentes na poética de cada experimento cênico. Desta maneira, a profusão de imagens colhidas na experiência artetnográfica nas comunidades da Ilha de Deus e do Boqueirão, juntamente com as situações e personagens do livro fomentam o que chamo de cartografia cênica, uma escrita talhada em imagens reais e ficcionais, que se deslocam, revelando os espaços reais e ficcionais percorridos pelos artistas em processo.

Há de se compreender que conhecer a obra de Josué de Castro, diante mão, já se configura como possibilidade de recuperação de suas referências para analisarmos a realidade de hoje. A denominada globalização, o fortalecimento do neoliberalismo e os processos de privatização estão aumentando a miséria na maior parte do mundo. O desemprego na cidade e no campo, as famílias morando nas ruas, o aumento no número de sem terra e de sem teto são exemplos da intensificação da exclusão social. Sem dúvida, Josué enfrenta uma geografia humana em relação à fome. A fome como resultado de exploração econômica, fome como produto de dominação política, fome como conseqüência da injustiça, fome como dependência, fome física, fome espiritual, fome como alienação. Fome como sede de lutar. 

Sendo assim, a fome é a questão central de seus estudos, e é a partir desse eixo, que o autor dimensiona suas análises de diversos outros temas como, por exemplo, a reforma agrária, a questão ecológica, o subdesenvolvimento e as desigualdades sociais. A opção pelo método geográfico possibilitou a Castro uma análise mais ampla. Assim, analisou o fenômeno da fome orientado pelos princípios fundamentais da ciência geográfica, cujo objetivo básico é localizar como precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos naturais e culturais que ocorrem na superfície da terra.

Nossa interlocução com a obra de Josué também nos fez identificar um tempo marcado por artistas em busca da revolução social, desde Glauber Rocha, no cinema novo, aos parangolés e penetráveis de Hélio Oiticica, nas artes visuais, que potencializam a cartografia cênica junto com o discurso de Josué e das comunidades, afetamo-nos numa insurreição contra às gritantes diferenças na sociedade brasileira, embaladas também pelas influências do movimento manguebeat, de Chico Science. A poética almejada na cena de Homens e Caranguejos é desvelar, como no romance, a placidez de charco, identificada, unificada no ciclo do caranguejo, é descortinar as famílias Silva, que vão vivendo com sua vida solucionada, numa marcha dentro de um ciclo até o fim de sua morte. Aquele corpo-lama que deixou de viver, dentro dum caixão, seguirá as etapas do verme e da flor, etapas demasiado poéticas, cheias duma poesia soterrada no mais íntimo do mangue ou mesmo sob o concreto das grandes cidades. 

 

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