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A cena mítica de Newton Moreno: Assombrações do Recife Velho e Memória da CanaLuciana Lyra

A cena mítica de Newton Moreno: Assombrações do Recife Velho e Memória da Cana

Resumo: Este artigo tem por objetivo abordar a obra do dramaturgo e diretor brasileiro Newton Moreno, pela perspectiva de dois de seus espetáculos Assombrações do Recife Velho e Memória da Cana, construídos junto à Companhia Os Fofos Encenam, de São Paulo.

 Palavras chave: Newton Moreno; Cena Mítica; Assombrações do Recife Velho; Memória da cana.

 

The Newton Moreno’s mythical scene: Assombrações do Recife Velho and Memória da Cana

Abstract: This paper aims to assess the work of brazilian playwright and director Newton Moreno, from the perspective of two of his plays Assombrações do Recife Velho and Memória da Cana, produced by the Company Os Fofos Encenam, from SãoPaulo.

Keywords: Newton Moreno; Mythical Scene, Assombrações do Recife Velho; Memória da Cana.

 

Introdução

Autor, diretor e ator teatral, radicado em São Paulo desde 1990, o pernambucano Newton Moreno destaca-se no cenário brasileiro especialmente no âmbito da escrita dramatúrgica. Sua dramaturgia manifesta herança da cultura popular, influências da origem do Nordeste, e compreende temas de impacto em torno do homoerotismo, tônica atemporal que transita entre o campo e a cidade. Dentre seus textos de maior relevância, estão: Agreste, As Centenárias, Maria do Caritó, A cicatriz é a flor. A partir de 2005, junto à companhia teatral paulistana Os Fofos Encenam, Moreno marca, como encenador, seu retorno ao berço nordestino com a escrita e a montagem da peça Assombrações do Recife Velho, inspirada em texto homônimo de Gilberto Freyre. Em 2009, dando continuidade à pesquisa em torno das suas reminiscências memoriais, Newton envereda pelo estudo da família patriarcal na orbe canavieira, aproximando o universo freyriano da Casa-Grande & Senzala, do topos do texto Álbum de família, do dramaturgo Nelson Rodrigues. É desta fricção que surge o espetáculo Memória da Cana. Do tom regionalista impregnado às falas rodrigueanas em Memória, até as incelenças cantadas no enterro da popular Dona Benvinda em Assombrações, texturas cênicas foram criadas, evidenciando uma outra escritura grafada no tempo e no espaço, escritura que se inscreve em campo plástico, sonoro, rítmico, uma cartografia abstrata, espetacular. Por meio da análise destas duas encenações, o presente artigo intenta destacar a força mítica atingida pela construção de polifonias cênicas, forças ativas que permitem que os vários criadores - atores, músicos, figurinistas, iluminadores, cenógrafos – entrem em contato com outros intérpretes da obra de arte: os espectadores.

1.A cena mítica de Newton Moreno

Na tentativa de definir o mito, Mircea Eliade (2002, p. 11) chegou à reflexão de que o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, diz ele, o mito narra como, graças a seres sobrenaturais, uma realidade passou a existir. O mito subsiste, portanto, desde sempre, dizendo e escondendo o começo da história, a um só tempo ocultação e celebração, esquecimento e perpetuação do início.  Na medida em que pretende explicar o mundo e o ser humano, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser lógico, ao revés, é ilógico e irracional. Mito é palavra, imagem, gesto, que circunscreve o acontecimento no coração do homem, emotivo antes de se fixar como narrativa, expressando o mundo e a realidade humana cuja essência é, efetivamente, uma representação coletiva que chegou até nós através de várias gerações.

Por ocupar este território de recuperação de acontecimentos reais ou imaginários, de celebração do pensamento abstrato e re-instauração do homem primordial, do tempo ritual, os mitos sempre estiveram presentes no processo artístico, evidenciados que estão na arte das culturas tradicionais, nas tragédias gregas, nos rituais étnicos e, mais recentemente, na cena teatral oriunda de práticas dionisíacas, nas investidas da avant-garde e no movimento de contracultura. Nas culturas tradicionais e rituais étnicos, a necessidade premente da sacral comunicação entre os participantes da comunidade e desta com as divindades, conduz a uma ordenação de signos em torno de seus mitos, conferindo significado às pinturas das cavernas, pedras esculpidas e revestindo os seus ritos de um caráter, indubitavelmente, cênico, mágico e encantatório. 

Segundo Renato Cohen (1998, p. 66), o teatro da crueldade de Artaud, a dança metafísica do balé de Java, os movimentos expressionistas de Mary Wigman, Laban e Dalcroze, que visavam a evocar potências além do ordinário, também adentravam no mesmo território de ordenação de signos em torno de mitos, materializando-se pelo potencial da imagem enquanto conduto da experiência. Os movimentos de vanguarda do início do século XX e a contracultura também se direcionaram a este campo do mito, no sentido da retomada do caráter sagrado das Artes, trespassando o limiar arte/vida, ficcional/real. O teatro contemporâneo, por ser herdeiro direto das investidas da avant-garde e da contracultura, atua num campo mais aberto à busca desta dita sacralidade e dos mitos de preenchimento, rege-se pela ludicidade e relação arquetípica com a obra, pelo jogo espontâneo e pela festa de comunhão com o espectador.

O estado festivo e ritualístico encontrado nos espetáculos realizados pelo dramaturgo e diretor brasileiro Newton Moreno junto à Companhia teatral Os Fofos Encenam de São Paulo, além da presença de híbridos experimentos de linguagem revelam as operações no território do mythos, que se distingue do topos do realismo cênico ou do ordinário cotidiano. Em Assombrações do Recife Velho (2005) e Memória da Cana (2009), por exemplo, não só os estados são instauradores deste território, mas as próprias narrativas fragmentadas em imagens servem como suporte para rememoração do tempo ritual, sendo também veículos de manifesto do campo mítico e mote de enlevo espetacular. 

Em Assombrações, baseado na obra literária homônima de Gilberto Freyre (1955), o uso do texto é redimensionado, a palavra passa a figurar como mais um elemento no discurso de mise en scène, de eminente autoria-criação do ator. Desta forma, o que se comunica revela-se na forma da cena, privilegiando mais a estrutura e menos o conteúdo, a narrativa linear. A dissolução de uma narrativa eminentemente aristotélica, não prejudica a apreensão do espetáculo, exatamente por este evocar mais o terreno dos sentidos, na criação de uma rede de significados. A destinação aos sentidos advém não só dos elementos de concepção cênica, mas principalmente da temática da morte, abordada na experiência da cena. 

A constante itinerância do espectador durante Assombrações fomenta um espaço lúdico, onde cenas tecidas como ‘causos’, recriam o ambiente favorável à recepção dos depoimentos, num contato próximo entre atores que contam e público partícipe. Paulatinamente, são mostrados personagens populares contando histórias de fantasmas que assombravam a região nordestina do Brasil. Entidades sobrenaturais, como o papa-figo, a morta forrozeira, o boca de ouro e o lobisomem, que convivem com o homem de barba ruiva, o invasor holandês, que chega pelo mar, ou mesmo com um Frei Caneca ressurgido para apontar não as aparições fantásticas, mas o sumiço de brasileiros durante a ditadura militar. É a contação de desencarnados que restaura a ideia do sobrenatural como resolução de impasses da vida cotidiana. O espetáculo parece estar, pois, no entre lugar do relato experiencial e o processo de individuação radical da vida por meio da comunhão com a temática mítica da morte. 

Em Memória da Cana, o leitmotiv da narrativa desdobra-se sob a égide do tronco genealógico. Neste espetáculo, a família universal dessacralizada por Nelson Rodrigues no texto Álbum de Família renasce revigorada ao encontrar raízes no interior de Pernambuco. O casal incestuoso Jonas e Dona Senhorinha surge como ícones míticos de uma tradição que se desdobra em sua segunda geração, os filhos: Guilherme, Glória, Edmundo e Nonô. No espetáculo Memória da cana, atores dialogam com sotaque, dançam e tocam maracatu, entoam cânticos religiosos e manipulam santos, trazem à tona as Casa grande & Senzala freyrianas e, desse modo, Moreno prossegue seu caminho de retorno às origens, percorrido com Assombrações. Em Memória, de certa forma, o dramaturgo e diretor reconduz Nelson à sua fonte prima de inspiração, como afirmou Magaldi (1981, p.20), se Nelson não fosse de Pernambuco, jamais teria escrito sua obra. "Por mais cariocas que sejam algumas de suas características, por mais visível que seja a cor local, há em seus textos um sopro, um vendaval, que vem da terra", escreveu.

Além de imantados da potência primária de figuras arquetípicas das tragédias gregas e rodriguianas, os protagonistas de Memória da cana são formados com base nas reminiscências familiares nordestinas do próprio elenco, que se mescla com mitos da região. Separado do palco apenas por uma cortina fina e translúcida, o público participa da trama, ambientada, em grande parte, na sala, cômodo que congrega a família. Por meio desse microcosmo social, potencializa-se um universo de desejos proibidos, amoralidades e perversões interditas. O espetáculo passa a ser uma imersão desconfortável para a plateia, que, entre cânticos, danças e ode ao sagrado, vê-se ante a uma cena convulsiva. O trabalho de contexto pessoal, imbrincando relações em arte/vida através de dinamismos sobre mitologia pessoal e composição de personas auto-referentes, por sua vez, também possibilita o desencadeamento de uma outra percepção e a instauração do território mítico enquanto sensação. 

 

Conclusão

Em síntese, uma das grandes contribuições de ambas investidas cênicas de Moreno é que, através da exacerbação da “imagem emocional” revela-se a cena, resgatando-se estruturas arquetípicas básicas e situações que pertencem ao inconsciente coletivo de artistas e espectadores, transformando a cena em reduto não contaminado pelos tentáculos do sistema, onde atuantes e plateia mantém viva a ritualização de situações antropológicas e práticas essenciais à preservação da psique coletiva. 

 

Referências 

 

COHEN, Renato. Work in Progress na cena contemporânea. São Paulo,Perspectiva, 1998.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo, Perspectiva, 2002.

LYRA, Luciana de F. R. P. de. Mito Rasgado; Performance e Cavalo Marinho na cena in processo. 2005. Dissertação (Mestrado em Artes), Instituto de Artes. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas-SP, 2005.

MAGALDI, Sábato.  O teatro completo de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro, Nova fronteira, 1981.

 

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